terça-feira, março 30, 2004

DESASSOSSEGADOS:



Por Nilo Neto

Segundo o jesuíta e paleontólogo francês, Pierre Theilard de Chardin (1881-1955), a Humanidade caminha no sentido de uma evolução “universal”, isto é, faz parte de um processo que se dá na natureza, no mundo, em todo lugar. Esta ascensão à esfera do “espírito humano”, do pensamento, do compartilhamento de idéias, de mentes (nous), resultará numa novíssima etapa de convívio e aprendizado para a Humanidade: marcará o início do estágio “evolutivo” da Noosfera, da plenitude de uma consciência solidária, de uma inteligência coletiva.
Outro pesquisador francês, Piérre Levy (1956 -) avistou a possibilidade da construção desta noosfera através da rede mundial de computadores. A base material que permitiria a instalação de um cenário assim já está disponível: são os computadores e a Internet, e o desenvolvimento de novos métodos e novas tecnologias de comunicação à distância vão, cada vez mais, ampliar o espectro de soluções para a integração dos povos do planeta. Além disso, a partir da base já instalada, inúmeras iniciativas vêm demonstrando a capacidade de organização e difusão de idéias e propostas, integrando o mundo real com o “virtual” a fim de colaborar para mudar, para melhorar a vida das pessoas
Eduardo Mourão de Vasconcelos, pesquisador brasileiro da Fiocruz, ao tratar do “empowerment” dos usuários de serviço de saúde mental, no Caderno de Textos da III Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorrida em Brasília, 2002, elenca uma série de
iniciativas, projetos e formas organizativas liderados ou assumidos de forma autônoma e independente pelos usuários e familiares:

a) ajuda mútua: já conhecemos no Brasil os grupos do tipo Alcóolicos
Anônimos (AA), Neuróticos Anônimos e organizações similares. Constituem grupos de
troca de experiências, ajuda emocional e discussão das diferentes estratégias de lidar
com os problemas comuns. São dispositivos importantes, principalmente se não isolados
em si mesmos e se forem acoplados a outros tipos de iniciativas, como as descritas a
seguir.

b) suporte mútuo: a partir das reuniões de ajuda mútua, é possível se
desenvolver atividades e iniciativas de cuidado e suporte concreto na vida cotidiana,
compreendendo desde, por exemplo, passeios e atividades de lazer e cultura nos fins de
semana; cuidado informal do outro que se encontra em maior dificuldade; ajuda nas
tarefas diárias na casa e fora dela; suporte a familiares que precisam de uma “folga” para
descansar ou viajar, assumindo-se o cuidado do usuário; até o desenvolvimento de
projetos comuns mais complexos em várias áreas: dispositivos residenciais, trabalho
para os usuários, cuidado domiciliar, acompanhamento, telefone de serviço de suporte
pessoal, clubes sociais e elaboração de cartilhas informativas e educativas para temas
relevantes (tais como efeitos colaterais de remédios, direitos, serviços, experiências
bem-sucedidas, como organizar um grupo de ajuda mútua, etc).

Desde janeiro de 2004, venho participando com um grupo de discussão na Internet, chamado DESASSOSSEGO. A proposta é a de reunir portadores do transtorno afetivo bipolar, familiares e amigos, para estabelecer trocas de experiências e criar uma rede de proteção mútua para situações de risco. Além disso, minha convivência com o grupo fez perceber que passamos a trocar também afetivamente e falamos muito mais do que apenas de doenças e tratamentos, para discutir temas como: família, filhos, suicídio, trabalho, futuro, poesia, amor, sexo, temas do cotidiano, política, mega-sena, carnaval, natal e muito mais. Também daí já surgiram outras iniciativas, como a criação de um blog coletivo, para expor arte e criatividade dos participantes, publicação de partes dos diálogos estabelecidos, troca de telefones para emergências psiquiátricas e a criação de um grupo de interferência política e social, para lutar pelos direitos dos portadores a um tratamento de qualidade, com medicação de alto custo subvencionada pelo governo.
No presente artigo vamos amadurecer essas possibilidades, trazendo um pouco de luz sobre a interação da virtualidade gerada na internet e o empoderamento destes portadores de transtorno mental, rumo a uma vida mais digna e saudável.

Também pretendemos perceber a influência da virtualidade e do anonimato no comportamento dos indivíduos do grupo, alterando a ética das relações estabelecidas e permitindo a manifestação de muitos que, levados pelo estigma da doença mental, não se o fariam em outro locus.

Se compreendermos o transtorno afetivo bipolar como uma doença mental universal e que existe há muitos séculos (visão tradicional da ciência e da psiquiatria) e o fato dos membros do grupo viverem em diferentes lugares do Brasil e de Portugal, em que medida essas diferenças geográficas interferem no tratamento e na vida dos “bipolares”? E as condições de acesso ao tratamento muda também a efetividade deste, tomando por base as políticas públicas de saúde em cada região?

O grupo é constituído por: pessoas de 20 a 50 anos de idade, homens e mulheres, brasileiros e portugueses. Foi criado em 22 de janeiro de 2001. Até 17 de fevereiro de 2004 foram 5.171 mensagens trocadas. No momento possui 56 membros. O grupo era aberto, ou seja, qualquer um poderia entrar e participar, mas desde dezembro de 2003, passou a ser fechado, necessitando de aprovação do proprietário ou moderadores para ter acesso. O grupo possui 1 proprietário e 4 moderadores.

Durante os dias: 11, 12 e 13, 14 e 15 de fevereiro de 2004, os temas debatidos no grupo e número de vezes que foram citadso:

· Trabalho da UFSC: 9
· Empoderameto (nada sobre nós, sem nós): 9
· Antimanicomial: 3
· Custo de tratamento: 3
· Auto ajuda (textos): 3
· Anos 80 (tema geral): 2
· Blog bipolar: 10
· Medicação: 2
· Papel do psiquiatra
· Exames

Total de Mensagens no período: 36

Sites pesquisados:

http://br.groups.yahoo.com/group/desassossego
http://www.novae.inf.br/exclusivas/pierrelevy.htm
http://www.inverso.org.br/index.php?action=/content/view&cod_objeto=35
Queridos amigos

Hoje estive no NAPS, hoje CAPS – ponta do coral, onde tenho feito meu tratamento nos últimos 3 anos. E vi aqueles usuários gordinhos de bem alimentados, seus passes de ônibus garantidos, a mesma galera praticamente desde que eu lá cheguei no ano 2000. Daí estivemos reunidos na associação dos usuários, pra discutir regimento interno e outras coisas mais. Depois almoçamos juntos e, de barriga cheia, fiquei pensando: quem vai querer lutar para ter autonomia e sair daqui, onde a comida é boa, o passe é garantido, tem oficinas de pintura e música, capoeira e teatro, velas decorativas e umas técnicas bonitas pra gente ficar paquerando... Quem vai tentar entrar no mercado de trabalho, pegar fila em banco, arrumar incomodação com sogra e imposto? Isso aqui é uma delícia, uma espécie de jardim de infância pra maluco, parque de diversões de doidinho, encosto garantido de usuário esperto.
O problema é que não cabe todo mundo aqui. E tem um montão de gente lá fora precisando entrar. E tem um monte de neguinho com grana e tudo, que nunca ouviu falar de caps e continua num quartinho escuro, escondido dos vizinhos, porque a família tem vergonha. E tem um bocado de família querendo jogar fora seus doidinhos, colocando eles pra brincar no parquinho durante o dia e voltando pra pegar de noite.
Daí então o lance é a gente fazer muitos desses caps por aí e conseguir vagas pra todo mundo curtir numa boa. E inventar caps pra drogado e alcoólatra, para criançada maluquinha, pros compulsivos de jogo (última moda) e ir tocando a vida assim, sem jamais mexer na ferida, sem jamais mudar as estruturas podres da sociedade. Sem ter que mexer: na família, no governo, na igreja, nas indústrias, nem nada. Prá que, né, se a gente está tão bem assim?
Essa redoma de vidro, onde as barras de ferro dos manicômios, foram sutilmente substituídas por barras químicas e psicológicas, chama-se manicômio do futuro, CAPS.
E para quem não estiver curtindo muito esta onda, porque tem medo da volta do manicômio do passado, que fique tranquilo. Está tudo garantido. A comidinha, o passe de ônibus, os passeios em museus e praias, tudo de primeiro mundo.
Só não pode reclamar. Tem que ficar quietinho. Senão aumentam a dose do teu remédio e te deixam doidão. Ou te convencem que as tuas palavras não tem sentido, que os teus sentimentos estão doentes, e que todos eles: médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, professores de educação física, arte terapeutas, oficineiros, seguranças, cozinheiras, faxineiros, atendentes, telefonistas, sabem o que é melhor pra ti. E se resolves retrucar, ou te humilham na frente dos outros usuários, com seu saber insuperável, ou fingem que tu nem estás ali, ou fazem que te ouvem, com um olhar compreensivo, para depois continuar fazendo tudo exatamente com antes.
Contra isso, meus amigos, muita coragem e a luta antimanicomial do futuro. Aquela que percebe com a cabeça e o coração que só tem um jeito: autonomia já, pra cada um ser exatamente como quiser, com suas estranhezas legítimas, e não ser inserido socialmente num ambiente que já está pra lá apodrecido. Autonomia para os técnicos que continuam agindo como pais e mães culpados, querendo que permaneçamos sempre os mesmos, coitadinhos e indefesos. Que nos falam entre indignados e surpresos: mas nós demos o melhor de nossas vidas pra vocês... Mas esqueceram de nos perguntar o que realmente queríamos. Autonomia pros nossos familiares para que, abandonando o desespero e o medo, consigam compartilhar pelo menos um minuto ou dois das nossas conquistas e voltem a sorrir junto conosco, das coisas boas e simples da vida. Autonomia pros governos, esses outros pais rancorosos e geradores de dependências. Autonomia para os corações dos que vêem no coração dos loucos, um pouco da sua própria loucura, e por isso tem medo e preconceito. Autonomia enfim, desse meu amor tão grande pelo mundo e pelas pessoas nele, um amor também cheio de culpa, pra que eu possa construir minha vida sem querer salvar ninguém, nem a mim mesmo, desse e de outros amores.

Nilo Neto
Seminário sobre a organização dos usuários e familiares:

Para além das múltiplas tragédias que tenho acompanhado nos últimos anos, meu convívio com os companheiros e companheiras da militância na luta antimanicomial pelo Brasil afora tem sido um aprendizado de garra, esperança e superação.

Ainda que existam casos em que as pessoas oprimidas, ao sentirem o maravilhoso sabor da liberdade e da consciência, passem quase que imediatamente a oprimir seus pares, passando ela já a ocupar o lugar do patrão ao invés de modificar o padrão.

A grande maioria dos “chamados loucos”, seus familiares e os técnicos que tiveram a coragem de se transformar internamente nessa nossa caminhada comum rumo a cidadania e autonomia, estiveram me mostrando as flores e espinhos do caminho, num compartilhar natural dos que já perderam tudo, a solidariedade dos que entendem as diferenças que nos faze iguais, o amor que transborda na taça dos que vivem um dia de cada vez.

Eu quero agradecer a todas essas pessoas que tiveram a ousadia de transformar a dor em luta, o desespero em persistência, a morte em superação, a loucura em oportunidade para se lançar em vôos inimagináveis.

Eu nunca me imaginei fazendo parte de um movimento tão revolucionário quanto o nosso.
Só mesmo um louco poderia imaginar que uma gente tão desprezada, maltratada, torturada e humilhada quanto os pacientes psiquiátricos no Brasil dos últimos 200 anos seria capazde dar a volta por cima e transformar esses verdadeiros campos de concentração e extermínio chamadado Hospital Psiquiátrico ou Manicômio, nesses jardins floridos dos serviços substitutivos , associações, exposições de arte, música teatro, em filmes, namoros, trabalho, cooperativas e no Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Estamos todos de parabéns! Entretanto, é um momento muito importante em nossa história .

Recentemente, parte de nosso grupo resolveu se desligar da árvore que sempre nos deu sombra e frutos, partindo para um novo desafio: o de construir uma rede nacional de núcleos da Luta Antimanicomial.
Por algum tempo isso me deixou perplexo e assustado , estríamos sofrendo o ataque dos nossos adversários da indústria da loucura, donos de manicômios, indústria farmacêutica e assemelhados, que estariam visando a velha tática de dividir para conquistar??

Entretanto hoje, um pouco mais calmo e distanciado do problema, penso que esta visão pode ser o resultado do amadurecimento do próprio grupo, que ao avistar dessemelhanças nas formas de estabelecer as estratégias de luta e organização dos militantes preferem criar seu próprio caminho.

Se esta separação significar a possibilidade de alcançar outras pessoas que até então não se envolveram em nossa luta, ótimo! Se continuarmos lutando contra nossos verdadeios inimigos : a exploração do homem pelo homem, a covardia do lucro como objetivo final, o egoismo destruindo as reais possibilidades de solidariedade, a construção de uma Rede Saúde Mental em que usuários , familiares e técnicos lutem (mutuamente) por uma autonomia digna, uma inserção social autêntica, um poder contratual entre nós e com o mundo verdadeiramante concreto, ótimo! Que sejam bem vindos!!

Nunca fui internado num manicômio. Felizmente, nesse últimos quatro anos e meioem que resolvi buscar novas maneiras de estar no mundo, recebi apoio e estímulo no NAPS de Florianópolis. Sou portanto já parte de uma nova geração de brasileiros pós reforma psiquiátrica (entendida como processo).

Isso requer também um novo olhar sobre a nossa Luta Antimanicomial.

Com o surgimento de novas lideranças políticas entre os usuários e familiares faz-se necessário parar e refletir. Ok, temos uma nova proposta sendo colocada em prática, mas ela nos convém?? Estarão sendo os CAPS transformados nos manicômios do futuro, na medida em que a resolutividade dos CAPS se mede pelo tanto que os usuários e familiares intervém na gestão dos serviços? O quanto avançamos?

Será que um dia teremos um usuário no ministério da saúde, ao invés de um psiquiatra??
Competência não nos falta, precisamos aprender a conquistar os espaços políticosque nos cercam, precisamos nos organizar em associações, movimentos, confederações, precisamos nos aceitar e compreender como grupo legítimoe capaz, precisamos criar espaços de troca de experiências e fortalecimento de laços afetivos para além dos CAPS.

Tudo está por fazer, nossa orgulhosa bandeira: Lei 10.216, está a nos guiar horizonte a fora.
Mãos a obra usuários e familiares!!

De nossas incerteza e erros façamos história, para que as próximas gerações possam exercer suas estranhesas legítimas em paz.


Um beijo na alma de todos
Obrigado.

Nilo Marques de Medeiros Neto
Florianópolis, 12 de março de 2004
escoliose

2003 foi um ano bom. Estivemos, em outubro, no III Fórum Catarinense de Saúde Mental, em Brusque. Conhecemos outros amigos de outras cidades, que também freqüentam os CAPS. Vendemos nossos produtos, pudemos discutir e fazer propostas sobre a situação em Santa Catarina. Também estivemos no 7º Encontro Nacional dos Usuários e Familiares do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, no Município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, em setembro. Em maio, teve o III Encontro Catarinense de Saúde Mental, na UFSC, para comemorar o 18 de maio, dia nacional da luta antimanicomial. Nessa mesma data, o NAPS teve um dia aberto para a comunidade que foi muito bom, para que mais pessoas conhecessem as possibilidades da Associação. Teve a luta pela reforma do casarão, que aconteceu principalmente nas reuniões do Conselho Municipal de Saúde. Teve a visita ao CAPS da Palhoça, onde a gente também participou de várias reuniões para trocar experiências, no sentido da formação de uma Associação. Participamos da luta dos companheiros do CAPS da policlínica, pela manutenção do atendimento de Álcool e Drogas. Na 102.9 FM, Rádio de Tróia, o Programa Mutante FM, apresentou várias mensagens, reportagens e músicas, sempre tentando desmistificar a loucura com muito bom humor. Vai ao ar todas as quintas, das 3 às 4 da tarde e dá pra ouvir bem na Trindade e bairros próximos. As velhas lutas pela comida e o passe continuam, sendo que melhorou bastante a qualidade e quantidade da alimentação.
Também temos desafios. Ainda não atingimos o grau de eficiência na geração de renda aos usuários, que desejamos. É preciso caminhar na direção: do cooperativismo, da compreensão dos extenuantes caminhos burocráticos e políticos, que cercam as fontes de financiamento e da capacidade de motivar nossos associados a buscarem a sua autonomia, usando o espaço da Associação para crescer. Precisamos lutar pela implantação da rede substitutiva de serviços de saúde mental em nosso município. Sem ela, corremos o risco de termos um tratamento insatisfatório, mesmo para os que ainda conseguem ser atendidos. Sem pelo menos: mais 4 Caps II, um CAPSi, dois CAPSAD, leitos em hospitais gerais, um centro de convivência, 4 Lares Abrigados, uma sede própria para a Associação e mais outras formas de atenção psicosocial que venham a surgir, o trabalho estará sempre deixando a desejar. Temos que acabar com o eletrochoque, que infelizmente ainda é aplicado em Santa Catarina. Precisamos acompanhar a implantação do programa “De volta pra casa”, do Governo Federal e também o PNASH – Psiquiatria (Programa de Avalição dos Hospitais Psiquiátricos), que o Governo Estadual faz, para garantir um mínimo de respeito aos pacientes que estão internados, enquanto ainda existirem manicômios. Falando nisso, o HCTP (antigo Manicômio Judiciário), também precisa do olhar atento desta Associação, porque todo mundo sabe que a vida lá dentro não é brincadeira e precisamos denunciar o desrespeito aos Direitos Humanos.
Como me disse um amigo usuário lá de Indaial, o Edson, que ligou esses dias para desejar um feliz natal: “a luta continua, companheiro.” É isso que eu diria pra todo mundo nesse final de ano. Com todas as nossas limitações e superações, acho que nós, usuários de serviço de saúde mental, estamos mostrando que através da organização e solidariedade um outro mundo é possível.
Hoje estive no NAPS, hoje CAPS – ponta do coral, onde tenho feito meu tratamento nos últimos 3 anos. E vi aqueles usuários gordinhos de bem alimentados, seus passes de ônibus garantidos, a mesma galera praticamente desde que eu lá cheguei no ano 2000. Daí estivemos reunidos na associação dos usuários, pra discutir regimento interno e outras coisas mais. Depois almoçamos juntos e, de barriga cheia, fiquei pensando: quem vai querer lutar para ter autonomia e sair daqui, onde a comida é boa, o passe é garantido, tem oficinas de pintura e música, capoeira e teatro, velas decorativas e umas técnicas bonitas pra gente ficar paquerando... Quem vai tentar entrar no mercado de trabalho, pegar fila em banco, arrumar incomodação com sogra e imposto? Isso aqui é uma delícia, uma espécie de jardim de infância pra maluco, parque de diversões de doidinho, encosto garantido de usuário esperto.
O problema é que não cabe todo mundo aqui. E tem um montão de gente lá fora precisando entrar. E tem um monte de neguinho com grana e tudo, que nunca ouviu falar de caps e continua num quartinho escuro, escondido dos vizinhos, porque a família tem vergonha. E tem um bocado de família querendo jogar fora seus doidinhos, colocando eles pra brincar no parquinho durante o dia e voltando pra pegar de noite.
Daí então o lance é a gente fazer muitos desses caps por aí e conseguir vagas pra todo mundo curtir numa boa. E inventar caps pra drogado e alcoólatra, para criançada maluquinha, pros compulsivos de jogo (última moda) e ir tocando a vida assim, sem jamais mexer na ferida, sem jamais mudar as estruturas podres da sociedade. Sem ter que mexer: na família, no governo, na igreja, nas indústrias, nem nada. Prá que, né, se a gente está tão bem assim?
Essa redoma de vidro, onde as barras de ferro dos manicômios, foram sutilmente substituídas por barras químicas e psicológicas, chama-se manicômio do futuro, CAPS.
E para quem não estiver curtindo muito esta onda, porque tem medo da volta do manicômio do passado, que fique tranquilo. Está tudo garantido. A comidinha, o passe de ônibus, os passeios em museus e praias, tudo de primeiro mundo.
Só não pode reclamar. Tem que ficar quietinho. Senão aumentam a dose do teu remédio e te deixam doidão. Ou te convencem que as tuas palavras não tem sentido, que os teus sentimentos estão doentes, e que todos eles: médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, professores de educação física, arte terapeutas, oficineiros, seguranças, cozinheiras, faxineiros, atendentes, telefonistas, sabem o que é melhor pra ti. E se resolves retrucar, ou te humilham na frente dos outros usuários, com seu saber insuperável, ou fingem que tu nem estás ali, ou fazem que te ouvem, com um olhar compreensivo, para depois continuar fazendo tudo exatamente com antes.
Contra isso, meus amigos, muita coragem e a luta antimanicomial do futuro. Aquela que percebe com a cabeça e o coração que só tem um jeito: autonomia já, pra cada um ser exatamente como quiser, com suas estranhezas legítimas, e não ser inserido socialmente num ambiente que já está pra lá apodrecido. Autonomia para os técnicos que continuam agindo como pais e mães culpados, querendo que permaneçamos sempre os mesmos, coitadinhos e indefesos. Que nos falam entre indignados e surpresos: mas nós demos o melhor de nossas vidas pra vocês... Mas esqueceram de nos perguntar o que realmente queríamos. Autonomia pros nossos familiares para que, abandonando o desespero e o medo, consigam compartilhar pelo menos um minuto ou dois das nossas conquistas e voltem a sorrir junto conosco, das coisas boas e simples da vida. Autonomia pros governos, esses outros pais rancorosos e geradores de dependências. Autonomia para os corações dos que vêem no coração dos loucos, um pouco da sua própria loucura, e por isso tem medo e preconceito. Autonomia enfim, desse meu amor tão grande pelo mundo e pelas pessoas nele, um amor também cheio de culpa, pra que eu possa construir minha vida sem querer salvar ninguém, nem a mim mesmo, desse e de outros amores.

Nilo Neto
Militante da luta antimanicomial

Floripa, 27 de fevereiro de 2004