terça-feira, março 30, 2004

Hoje estive no NAPS, hoje CAPS – ponta do coral, onde tenho feito meu tratamento nos últimos 3 anos. E vi aqueles usuários gordinhos de bem alimentados, seus passes de ônibus garantidos, a mesma galera praticamente desde que eu lá cheguei no ano 2000. Daí estivemos reunidos na associação dos usuários, pra discutir regimento interno e outras coisas mais. Depois almoçamos juntos e, de barriga cheia, fiquei pensando: quem vai querer lutar para ter autonomia e sair daqui, onde a comida é boa, o passe é garantido, tem oficinas de pintura e música, capoeira e teatro, velas decorativas e umas técnicas bonitas pra gente ficar paquerando... Quem vai tentar entrar no mercado de trabalho, pegar fila em banco, arrumar incomodação com sogra e imposto? Isso aqui é uma delícia, uma espécie de jardim de infância pra maluco, parque de diversões de doidinho, encosto garantido de usuário esperto.
O problema é que não cabe todo mundo aqui. E tem um montão de gente lá fora precisando entrar. E tem um monte de neguinho com grana e tudo, que nunca ouviu falar de caps e continua num quartinho escuro, escondido dos vizinhos, porque a família tem vergonha. E tem um bocado de família querendo jogar fora seus doidinhos, colocando eles pra brincar no parquinho durante o dia e voltando pra pegar de noite.
Daí então o lance é a gente fazer muitos desses caps por aí e conseguir vagas pra todo mundo curtir numa boa. E inventar caps pra drogado e alcoólatra, para criançada maluquinha, pros compulsivos de jogo (última moda) e ir tocando a vida assim, sem jamais mexer na ferida, sem jamais mudar as estruturas podres da sociedade. Sem ter que mexer: na família, no governo, na igreja, nas indústrias, nem nada. Prá que, né, se a gente está tão bem assim?
Essa redoma de vidro, onde as barras de ferro dos manicômios, foram sutilmente substituídas por barras químicas e psicológicas, chama-se manicômio do futuro, CAPS.
E para quem não estiver curtindo muito esta onda, porque tem medo da volta do manicômio do passado, que fique tranquilo. Está tudo garantido. A comidinha, o passe de ônibus, os passeios em museus e praias, tudo de primeiro mundo.
Só não pode reclamar. Tem que ficar quietinho. Senão aumentam a dose do teu remédio e te deixam doidão. Ou te convencem que as tuas palavras não tem sentido, que os teus sentimentos estão doentes, e que todos eles: médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, professores de educação física, arte terapeutas, oficineiros, seguranças, cozinheiras, faxineiros, atendentes, telefonistas, sabem o que é melhor pra ti. E se resolves retrucar, ou te humilham na frente dos outros usuários, com seu saber insuperável, ou fingem que tu nem estás ali, ou fazem que te ouvem, com um olhar compreensivo, para depois continuar fazendo tudo exatamente com antes.
Contra isso, meus amigos, muita coragem e a luta antimanicomial do futuro. Aquela que percebe com a cabeça e o coração que só tem um jeito: autonomia já, pra cada um ser exatamente como quiser, com suas estranhezas legítimas, e não ser inserido socialmente num ambiente que já está pra lá apodrecido. Autonomia para os técnicos que continuam agindo como pais e mães culpados, querendo que permaneçamos sempre os mesmos, coitadinhos e indefesos. Que nos falam entre indignados e surpresos: mas nós demos o melhor de nossas vidas pra vocês... Mas esqueceram de nos perguntar o que realmente queríamos. Autonomia pros nossos familiares para que, abandonando o desespero e o medo, consigam compartilhar pelo menos um minuto ou dois das nossas conquistas e voltem a sorrir junto conosco, das coisas boas e simples da vida. Autonomia pros governos, esses outros pais rancorosos e geradores de dependências. Autonomia para os corações dos que vêem no coração dos loucos, um pouco da sua própria loucura, e por isso tem medo e preconceito. Autonomia enfim, desse meu amor tão grande pelo mundo e pelas pessoas nele, um amor também cheio de culpa, pra que eu possa construir minha vida sem querer salvar ninguém, nem a mim mesmo, desse e de outros amores.

Nilo Neto
Militante da luta antimanicomial

Floripa, 27 de fevereiro de 2004

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