terça-feira, março 30, 2004

Seminário sobre a organização dos usuários e familiares:

Para além das múltiplas tragédias que tenho acompanhado nos últimos anos, meu convívio com os companheiros e companheiras da militância na luta antimanicomial pelo Brasil afora tem sido um aprendizado de garra, esperança e superação.

Ainda que existam casos em que as pessoas oprimidas, ao sentirem o maravilhoso sabor da liberdade e da consciência, passem quase que imediatamente a oprimir seus pares, passando ela já a ocupar o lugar do patrão ao invés de modificar o padrão.

A grande maioria dos “chamados loucos”, seus familiares e os técnicos que tiveram a coragem de se transformar internamente nessa nossa caminhada comum rumo a cidadania e autonomia, estiveram me mostrando as flores e espinhos do caminho, num compartilhar natural dos que já perderam tudo, a solidariedade dos que entendem as diferenças que nos faze iguais, o amor que transborda na taça dos que vivem um dia de cada vez.

Eu quero agradecer a todas essas pessoas que tiveram a ousadia de transformar a dor em luta, o desespero em persistência, a morte em superação, a loucura em oportunidade para se lançar em vôos inimagináveis.

Eu nunca me imaginei fazendo parte de um movimento tão revolucionário quanto o nosso.
Só mesmo um louco poderia imaginar que uma gente tão desprezada, maltratada, torturada e humilhada quanto os pacientes psiquiátricos no Brasil dos últimos 200 anos seria capazde dar a volta por cima e transformar esses verdadeiros campos de concentração e extermínio chamadado Hospital Psiquiátrico ou Manicômio, nesses jardins floridos dos serviços substitutivos , associações, exposições de arte, música teatro, em filmes, namoros, trabalho, cooperativas e no Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Estamos todos de parabéns! Entretanto, é um momento muito importante em nossa história .

Recentemente, parte de nosso grupo resolveu se desligar da árvore que sempre nos deu sombra e frutos, partindo para um novo desafio: o de construir uma rede nacional de núcleos da Luta Antimanicomial.
Por algum tempo isso me deixou perplexo e assustado , estríamos sofrendo o ataque dos nossos adversários da indústria da loucura, donos de manicômios, indústria farmacêutica e assemelhados, que estariam visando a velha tática de dividir para conquistar??

Entretanto hoje, um pouco mais calmo e distanciado do problema, penso que esta visão pode ser o resultado do amadurecimento do próprio grupo, que ao avistar dessemelhanças nas formas de estabelecer as estratégias de luta e organização dos militantes preferem criar seu próprio caminho.

Se esta separação significar a possibilidade de alcançar outras pessoas que até então não se envolveram em nossa luta, ótimo! Se continuarmos lutando contra nossos verdadeios inimigos : a exploração do homem pelo homem, a covardia do lucro como objetivo final, o egoismo destruindo as reais possibilidades de solidariedade, a construção de uma Rede Saúde Mental em que usuários , familiares e técnicos lutem (mutuamente) por uma autonomia digna, uma inserção social autêntica, um poder contratual entre nós e com o mundo verdadeiramante concreto, ótimo! Que sejam bem vindos!!

Nunca fui internado num manicômio. Felizmente, nesse últimos quatro anos e meioem que resolvi buscar novas maneiras de estar no mundo, recebi apoio e estímulo no NAPS de Florianópolis. Sou portanto já parte de uma nova geração de brasileiros pós reforma psiquiátrica (entendida como processo).

Isso requer também um novo olhar sobre a nossa Luta Antimanicomial.

Com o surgimento de novas lideranças políticas entre os usuários e familiares faz-se necessário parar e refletir. Ok, temos uma nova proposta sendo colocada em prática, mas ela nos convém?? Estarão sendo os CAPS transformados nos manicômios do futuro, na medida em que a resolutividade dos CAPS se mede pelo tanto que os usuários e familiares intervém na gestão dos serviços? O quanto avançamos?

Será que um dia teremos um usuário no ministério da saúde, ao invés de um psiquiatra??
Competência não nos falta, precisamos aprender a conquistar os espaços políticosque nos cercam, precisamos nos organizar em associações, movimentos, confederações, precisamos nos aceitar e compreender como grupo legítimoe capaz, precisamos criar espaços de troca de experiências e fortalecimento de laços afetivos para além dos CAPS.

Tudo está por fazer, nossa orgulhosa bandeira: Lei 10.216, está a nos guiar horizonte a fora.
Mãos a obra usuários e familiares!!

De nossas incerteza e erros façamos história, para que as próximas gerações possam exercer suas estranhesas legítimas em paz.


Um beijo na alma de todos
Obrigado.

Nilo Marques de Medeiros Neto
Florianópolis, 12 de março de 2004

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