sexta-feira, abril 30, 2004

Se me perguntassem: Nilo, o caps é ruim?

Eu diria que não. Mas pode melhorar muito. Não pretendo ser visto como oposição a toda a reforma psiquiátrica. Mas muito pouco se investe na rede, na cultura, na autonomia dos usuários. Tudo está muito devagar. Nós do controle social não temos a obrigação de conhecer os caminhos legais e nem os político-partidários. Nosso papel é contribuir para a construção de uma política de saúde mental em sintonia com nossas realidades e nossos desejos.
Será que esperamos demais do governo?

O Eduardo Mourão de Vasconcelos, no seu último livro sobre empowerment, até onde compreendi, diz que o problema é da nossa cultura latina, hierarquizada e que valoriza demais as redes de relacionamento, inclusive o familiar. Diferente dos povos do norte da Europa e anglo-saxões, que dão estímulo para que as pessoas sejam mais autônomas e até individualistas. Ele diz também que o fato de sermos um país capitalista periférico, determina que a luta dos usuários seja por direitos básicos, como alimentação e transporte. Que as discussões relacionadas a outros direitos acabam ficando abafadas pela situação de miséria de muitos dos nossos companheiros usuários e suas famílias. Diz ainda o Eduardo, que nossa classe média é profundamente preconceituosa com a doença mental, dificultando a adesão de usuários com uma maior formação acadêmica e articulação política.
Então estamos remando contra uma grande maré, quando lutamos pela formação política dos usuários e o estímulo da construção de associações que sejam terreno fértil, para nossos sonhos de vida melhor.

Mas Nilo, pra você tudo é mais fácil. Sua família lhe ajuda. Você tem um carro e fez faculdade. Você nunca foi internado nem tomou eletro-choque.

Não se pode comparar as dores. Eu sei das minhas limitações e superações. O fato de eu estar ainda participando dessa luta é um sinal de que realmente consegui parar de olhar somente para meu umbigo e fica me achando um coitadinho. Acho sim, que poderia estar fazendo mais do que faço hoje. Mas resolvi tirar a prova dos 9, para saber se o SUS é para todos, não só para os pobres. E saber se já existe alguma possibilidade de eu conseguir aumentar meu poder contratual, como dizem os livros, através dos espaços propostos pelo CAPS, os técnicos, os governos, as associações e o terceiro setor.

Então clareiem minha cabeça e meu coração.

Respondam, onde mora a felicidade?

18 de maio está chegando. Vamos aproveitar para, além de festejar as conquistas, fazermos algumas reflexões sobre o que queremos da atenção psicosocial.

Estarei, a convite, no I Seminário do Movimento da Luta Antimanicomial "Por uma sociedade sem manicômio", que está sendo realizado pelo Núcleo da Luta de Criciúma, Santa Catarina. As companheiras Dipaula e Edelu estão organizando o evento. Certamente vai ser uma boa troca.

Grande abraço, saúde e sorte.

Nilo Neto



quarta-feira, abril 28, 2004

Texto proferido durante a Conferência Estadual de Saúde Mental – Florianópolis/SC 2001.

Agradeço a oportunidade de estar aqui entre vocês. Quem me conhece há mais tempo sabe que a trajetória entre o dia do meu diagnóstico como portador do transtorno afetivo bipolar e hoje, fazendo essa fala, é cheia de percalços, dores, alegrias e principalmente muito aprendizado. Obrigado pai e mãe, pelo apoio incondicional e paciência nas horas mais duras.
De todas as maneiras possíveis para começar essa pequena conversa, talvez a menos simpática seja a de, já nas primeiras palavras, desabridamente, escancaradamente, desavergonhadamente dizer: ninguém é louco e ao mesmo tempo, todos somos.
Esse tipo de afirmação pode suscitar inúmeras novas idéias ou contraposições, mas vou procurar me deter em apenas duas ou três.
A primeira que me ocorre, é o tema proposto por esta conferência: cuidar sim, excluir não. Se partirmos do pressuposto que qualquer pessoa sob determinadas circunstâncias pode vir a enlouquecer, começamos a entender melhor a situação. E porque então algumas pessoas são diagnosticadas e outras não? Deve-se ao fato de que foi estabelecido por nossa cultura e nossa época, que certos comportamentos são socialmente inaceitáveis e o doente mental não seria capaz dessa convivência, estando em surto. Alguns dizem que a internação só acontece se a pessoa estiver pondo em risco a sua vida ou a de outros. Conheço vários motoristas que já deveriam estar internados há muito tempo. E certos políticos então, que com suas roubalheiras colocam em risco a vida de populações inteiras. Mas não vim fazer denúncia.
Queria dizer que quando todos compreenderem que também estão sujeitos a algum tipo de loucura, fica mais fácil deixar de excluir, de menosprezar, de maltratar... Uma das facetas mais doloridas da trajetória do portador de doença mental é perceber que o que ele diz ninguém mais ouve. É como no ditado: “deixa, deixa ele falar, o médico disse pra não contrariar”.
E quando se fala em cuidar, isso me soa meio paternal demais. Cuidar deve significar: dar emprego, dignidade, ouvir, estabelecer relações verdadeiramente afetuosas, participar dos movimentos sociais que privilegiem a melhora na vida dos usuários, como o movimento da luta antimanicomial ou o projeto fênix. Cuidar não significa entupir de remédios e ter vergonha dos vizinhos porque o filho é esquizofrênico e fala de um jeito diferente.
Outra interpretação muitíssimo relevante dessa frase: ninguém é louco e ao mesmo tempo, todos somos, significa romper a hierarquia estabelecida dentro de muitos consultórios psiquiátricos, psicológicos, nas oficinas dos NAPS e CAPS, para que de uma vez por todas possamos perceber que a possibilidade de real melhora na vida de todos os envolvidos, inclusive médicos, psicólogos, terapeuta, etc, está no estabelecimento de laços entre iguais, onde cada um participa dessa construção trazendo aquilo que tem de melhor, seja um conhecimento teórico obtido nas universidades e através de outros estudos, seja com a prática diária da convivência com o portador de um transtorno mental. Só com este entendimento poderemos realmente ultrapassar a exclusão e criar um ambiente propício para a recuperação ampla do portador de sofrimento psíquico.
Finalmente, a frase: ninguém é louco e ao mesmo tempo, todos somos, significa o fim dos hospitais psiquiátricos, esses antros de horrores morais, sociais e psicológicos. Só com a queda daqueles muros poderemos dormir tranqüilos e saber que mais nenhum ser humano será vítima de eletro-choque e outras torturas, para proporcionar o enriquecimento de meia dúzia de médicos safados, que não se cansam de vampirizar a vida de almas, já por si só, sofredoras.
Gostaria de encerrar minha participação, citando um texto de Clarice Lispector que traduz toda a possibilidade de um diferente.
Cito:

UM PATO FEIO

Mas foi no céu que se explicou seu braço desajeitado: era asa. E o olho um pouco estúpido, aquele olhar estúpido dava certo nas larguras. Andava mal, mas voava. Voava tão bem que até arriscava a vida, o que era um luxo. Andava ridículo, cuidadoso. No chão ele era um paciente.

Nilo M. de Medeiros Neto

terça-feira, abril 27, 2004

Brasileiro, nascido em 1969, filho e neto de militares e comerciantes, estudei a vida inteira em colégios católicos. Perdoem se em algum momento não demonstrar uma linguagem ou pensamento amadurecidos, em termos de transformação social.

A mim me parece que a verdadeira possibilidade revolucionária na estrutura da rede substituviva de serviços de saúde mental, está nas associações, cooperativas, núcleos da luta antimanicomial. Daí poderíamos avistar no horizonte das utopias, uma mudança autêntica dos padrões até então adotados pela sociedade, em relação à atenção psicosocial.

Dia desses ouvi, que o comunismo nunca funcionou porque os proletários, no fundo, querem ser burgueses e não que desapareça a miséria. Então poderíamos dizer, que o sonho dos loucos é ser normais, e não que a loucura desapareça. É o individualismo sobrepujando o coletivo, como sempre. Se pelo menos eu deixar de ser pobre, ou louco, que se danem os outros. É por isso também que as lutas que conseguem mobilizar os usuários também são assistencialistas: o passe, a comida e o “de volta pra casa”. Aí começa a ficar interessante ser usuário. Na medida em que penso: sou louco, mas: como de graça todo dia, tenho minhas passagens de ônibus garantidas, passo o dia lá, faço umas oficinas de artesanato, vejo televisão, bato papo com outros companheiros usuáiros, fumo um cigarrinho, não incomodo minha família e volto pra casa a noite. E tudo permanece como está.

A participação dos usuários em associações estruturadas, exige um certo desejo de encontrar saídas que possam ser compartilhadas com o grupo. Exige barriga cheia, alguma leitura e muita discussão. Porque não nos aproximamos de movimentos sociais bem sucedidos, com o: dos sem-terra, dos sem-teto, dos companheiros do DST/AIDS? Será que nossa desorganização, nossa não mobilização é somente causada por nosso desinteresse? Quem lucra se permancer tudo como está? Estamos inseridos num contexto maior, que nos engole sem que percebamos. Foram 20 anos de ditadura, 150 anos de hospícios e 500 anos de exploração do homem pelo homem.

A verdadeira revolução estaria em lutar pela extinção da loucura, doença social que arranca a cidadania das pessoas desequilibradas mentalmente. Ou todo mundo é louco, ou ninguém é. Esse deveria ser nosso verdadeiro lema. Não apenas lutar contra as instituições, que são o reflexo desse pensamento. O combate à praga do pensamento manicomial, que ainda governa muito da nossa tímida reforma psiquiátrica e dos atores nela envolvidos.

E porque a associação é a geradora desta luz? Porque seria uma verdadeira possibilidade de discutir e executar, via geração de renda, uma nova postura entre usuários. Já que mal conseguimos avistar uma autêntica revolução, com os loucos tomando o poder nos hospícios, CAPS, quartéis, igrejas e bancos, que pelo menos haja um amadurecimento político entre nós, a ponto de conseguirmos criar conselhos gestores em cada unidade de atenção psicosocial deste país.

Muito longe de estar livre destes problemas, estou pra lá de mergulhado no desejo de: deixar de ser usuário, ter minha casinha com meu amor, ser normal, ter salário bom, pagar imposto alto sem retorno social, viajar nas férias, ter um filhinho, votar nas eleições e esquecer em quem votei, assistir TV a cabo, comer do bom e do melhor e nunca mais ter que voltar lá no CAPS e na Associação dos Usuários. Esquecer dessa luta inglória em que só se fala e pouco se faz. Inclusive eu. Afinal, tenho lá minha mesada que papai me dá e pego meu remédio no SUS, de graça. Prá que vou me incomodar, né? Pra depois ser taxado de aproveitador, de deitado, de burguês querendo ir pro céu porque ajuda os necessitados, de riquinho metido a besta? Afinal, o CAPS, o SUS, tudo o que vem do governo, só deve ser para os pobres. E com esse tipo de pensamento, continuamos perpetuando o fosso que hoje nos separa e nos leva para os abismos: da indiferença, do tráfico, do sequestro e dos manicômios.

Não existe moral da história. Estamos em construção permanente. Eu estou, no momento, de saco cheio. E haja carbo lítio pra segurar a onda. Não queria ser só mais um dente na engrenagem. Queria ser feliz logo. Queria ver as coisas acontecendo e ser, eu mesmo, um feliz exemplo da volta por cima. Mas não sei bem se estou adiante do meu tempo ou se sou só mais um tolo inocente, que acredita na humanidade e nas mudanças. Que deus tenha piedade de nós. E que ele permaneça sendo: avaiano, flamenguista e brasileiro.


terça-feira, abril 06, 2004

Florianópolis, 5 de junho de 2002-06-05
Carta aos Usuários

Cada vez que não conseguirmos mais nos ouvir uns aos outros, e cairmos num desespero surdo, que só consegue machucar e humilhar os outros, aí está o manicômio.
Cada vez que acharmos que estamos sozinhos, e desistirmos da luta maior, aí está o manicômio.
Cada vez que sentirmos vergonha, por nós e pelos outros, de sermos usuários, assim como desânimo para freqüentar o serviço, ou medo de estarmos piorando nossa condição de saúde quando estamos lá, aí está o manicômio.
Cada vez que esquecermos quem somos, que nossa força só acontece quando estivermos conscientes de nossas possibilidades e limites, e que somente poderemos sair desse lugar que nos colocaram quando unidos, aí está o manicômio.
Cada vez que ficarmos embriagados com o poder, manipulando nossos companheiros para conseguirmos vantagens pessoais e, alimentando vaidades fúteis, perdermos de vista o verdadeiro objetivo, na Associação e onde quer que estejamos representando os usuários, aí está o manicômio.
Cada vez que erguermos a voz, querendo pedir socorro e só saírem misérias e ofensas, aí está o manicômio.
O Manicômio não é só um lugar, mas um inferno que põe muros enormes entre cada um nós.
Os nossos verdadeiros inimigos, aqueles que pretendem nos manter presos a esse lugar de “loucos de todos os gêneros”, seja entre os muros dos hospícios e clínicas, seja por nos convencerem que não temos valor, que não sabemos lutar, nem ter nossas próprias idéias, nosso autogoverno, que sempre dizem que nossa luta é apenas “parte da dinâmica” da nossa doença, devem estar dando risada da nossa cegueira.
Por um segundo vamos abandonar um pouco a raiva e o medo e perceber que já temos conquistas. Que ainda há muitas batalhas pela frente, mas a maior delas, a construção de uma identidade, é o primeiro passo para um destino maior.

“Sou louco sim, doutor, mas tenho meus direitos. Se o Senhor não me deixar ser cidadão, tenho em minhas mãos leis que me garantem esse direito. E o Paulo Delgado que me abençoe, eu vou fundo. Hoje o Senhor me olha aqui, tremendo, um pouco nervoso, mas não tem idéia o que eu já vivi. Do quanto eu já fui humilhado por ser diferente. Por não agüentar as regras sociais, por não aceitar uma família que me trata como um peso morto, por viver num lugar em que a gente só tem valor se ganhar muito dinheiro. O Senhor pode me receitar um remédio, pode me tirar o direito de fazer o que eu quiser com o meu dinheiro, minhas coisas, pode até me internar num desses hospícios medonhos que o Senhor diz que vai reformar para ficar mais humano. Mas hoje eu sei o nome da minha doença, sei o que esses remédios fazem comigo. Por isso exijo que ser tratado como um cliente, não somente um paciente. Hoje eu sei que tem um usuário como eu que está fiscalizando essas internações e os que viveram o que eu estou vivendo não vão me deixar na mão. Sei também da luta deles em todos os encontros e comissões que tratam de saúde mental em todo esse Brasil. Queria lhe dizer doutor, que eu faço parte de um movimento chamado luta antimanicomial. É isso mesmo Doutor, é um pessoal da pesada. Cada passo que eu dou em direção da minha cidadania, mais eu me afasto do surto. E não vou mais aceitar mais nenhum tipo de tratamento abusivo ou desumano. Hoje o seu poder tem limites Doutor. Hoje eu sei quem eu sou. ”




Nilo Marques de Medeiros Neto
Presidente da Associação dos Usuários do NAPS – Ponta do Coral
Sempre sonhei com um jornal-oficina no NAPS que realmente tivesse mais letras doidas. Que não fosse apenas um instrumento de divulgação das atividades, mas que pudesse também refletir algum espírito crítico, surreal e anárquico, como costuma ser nossa convivência e crescimento: pessoal, terapêutico e político, aqui na casa da ponta do coral. Neste sentido, gostaria de trocar uma palavra ou duas com você, caro leitor.
São muitas lutas nesses anos de existência da Associação. Para citar algumas: a participação maciça dos usuários no V Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, em Miguel Pereira, Rio de Janeiro, outubro de 2001; a III Conferência Nacional de Saúde Mental, Brasília, mesmo ano; nossa construção de um SUS autenticamente democrático e eficiente, através da cadeira no Conselho Municipal de Saúde de Florianópolis; a luta pelo passe, a alimentação e a reforma do casarão. Nestes e em outros casos, a união e articulação dos usuários do NAPS foi parte essencial para que atingíssemos nossos objetivos.
Agora é o momento de, como esta história na mão, olharmos para o futuro sem medo, mas sem ilusões. Existem diferenças de posturas políticas e ideológicas fundamentais que marcam nossa convivência dentro do NAPS. Uns agem de maneira paternalista, procurando soluções de resultado imediato e voltada ao próprio benefício. Outros pretendem encontrar saídas com um olhar especial para o coletivo, quebrando um padrão de dependência e de eterna passividade, herança de uma cultura política antiquada, que hoje se mostra claramente incapaz de atender aos desejos de melhorar a qualidade de vida dos nossos: familiares, usuários e técnicos. Estes mesmo que constroem um espaço de convivência tão rico em possibilidades, quanto o NAPS.
Cabe a cada um compreender estas relações de poder e, consciente das posturas e propostas de cada grupo, participar ativamente das decisões tomadas: dentro da Associação, das Assembléias Gerais e junto à coordenação do NAPS, como forças que aqui representamos: técnicos, familiares e usuários.

Nilo Marques de Medeiros Neto
Vice-Presindente da Associação dos Usuários do NAPS
Sugestão de Questionário a ser aplicado nos usuários do NAPS

1. Sexo – Masc. Ou Fem.
2. Idade – 15-30 / 31-45 /46-60 / mais de 60 anos
3. O tratamento de saúde que você recebe no NAPS, está fazendo você se sentir melhor? – Muito / Um pouco / Quase nada
4. Qual a importância de freqüentar as oficinas terapêuticas para a sua melhora? - Muito / Um pouco / Quase nada
a. Que oficina você mais gosta?
b. Que oficina você menos gosta?
c. Que oficina você gostaria que fosse feita?
5. Como você é tratado(a) pelos técnicos? – Bem / Mais ou menos / Mal
a. Qual o técnico que você mais gosta?
b. Qual o técnico que você menos gosta?
c. O que você faria para melhorar a relação entre técnicos e usuários?
d. Que profissional você gostaria que fizesse parte da equipe do NAPS?
6. Com quem você conversa quando está com algum problema? Usuário / Técnico /Os dois / Outros
7. Você gosta da comida servida no NAPS? Muito / Um pouco / Quase nada
8. Você gostaria que seus familiares participassem de atividades no NAPS? Sim / Não
9. Como você avalia seu relacionamento com os outros usuários? Muito bom / Razoável / Ruim
10. Como você avalia a atuação da Associação dos Usuários? Muito boa / Razoável / Ruim
11. Você sabe para que serve a Associação? Sim / Não
12. Que tipo de trabalho para gerar renda você gostaria de fazer através da Associação?
13. Você sabe o que é a Reforma da Saúde Mental no Brasil hoje? Sim / Não
14. Você sabe o que é o Movimento da Luta Antimanicomial? Você gostaria de participar das reuniões da Luta?
15. Você sabe para que serve o controle social?
16. Você sabe o que é o Conselho Municipal de Saúde? Gostaria de Participar?


Salve povo que no deserto caminhava

E nestes poucos dias de convívio no grupo, aprende-se.
Temos nós todos a mesma limitação, que a meu ver, nasce na sensibilidade, que pode ser mantida anestesiada sob o efeito de algumas medicações e estão sempre estimuladas pelo chamado gatilho emocional. Até aí, todo mundo já conhece, certo? Mas estamos no mundo. E esta época de final de ano é quando os donos de hospícios mais lucram, visto que ficamos todos "agitados". Dizem também que a chegada do calor, do verão (no hemisfério sul, claro), pode contribuir com estas explosões chamadas episódio maníaco.
Então junte-se a todo este molho, um governo que não está conseguindo distribuir a renda e continua incompetente para criar empregos. Mas também, para mim, por exemplo, mesmo que vivesse na fartura de um rico país do primeiro mundo, com a capacidade que tenho de me sentir ofendido e reagir à altura, não estaria habilitado a ficar muito tempo em emprego nenhum. E que bom, somos diferentes também nos sintomas, já que alguns conseguem se adaptar e engolir sapos e lagartos de chefes e companheiros de trabalhos sacanas e que estão sempre dando um jeitinho de puxar o tapete dos outros (o que no meu caso é facílimo).
Então porque estaria eu fazendo todas estas malditas perorações?
Bom, dá-me a impressão de que apesar das rusgas eventuais, existe um desejo de tolerância mútua, esta que não encontramos a vida toda no trabalho, na família ou na escola. Deveremos manter este idílico espaço de convívio virtual? Ou tranquilamente explodi-lo, como de resto acabamos por fazer na gradissíssima maioria das relações (transtorno AFETIVO bipolar)que tentamos estabelecer até hoje?
Respostas fáceis, por favor. Vamos nos amar, vamos usar a distância para treinar engolir sapos e tentar uma vida menos sofrida.
Esse exercício, a que alguns chamam terapia, outros auto-ajuda, que aqui perpetramos, seja pela nossa inteligência racional (espécie de compensação natural por sermos retardados emocionais), seja pelo acúmulo de experiência através dos anos de convívio com o transtorno, seja pelo desejo de continuarmos vivos, deve continuar.
E se as regras não estão ainda claras e solidificadas (coisa que muito incomoda aos bipolares, sempre buscando regras do lado de fora, para compensar a confusão do lado de dentro), cabe-nos, mais uma vez, respirar fundo, olhar para o copo de cicuta e adiar mais uma vez o fim.
Pra quem teve paciência de ler até aqui, obrigado.
Fazia muito tempo que não escrevia tanto.
Sinto-me levemente mais tranquilo, também.
Abraço a todos

Nilo Neto
A maneira de amar despojada de sentimentalismo parte do princípio de que ninguém pode salvar ninguém e é preciso incansavelmente, por todos os meios, ajudar aos outros a se salvar a si próprios. Todo amor que ignora estes princípios e se proclama capaz de salvar, ainda está cheio de ambição. E culpa, mais de culpa, quem sabe.

Fernando Gabeira
ASSOCIAÇÃO DOS USUÁRIOS DO NAPS

FLORIANÓPOLIS/SC

EVENTOS E PROJETOS DE 2002

NILO MARQUES DE MEDEIROS NETO


Para melhor compreensão do trabalho que tenho feito junto à Associação dos Usuários dos NAPS, é preciso salientar quatro pontos principais:
1. O controle social
2. A formação e fortalecimento da rede de associações de familiares e usuários de serviços de saúde mental em Santa Catarina
3. A atuação cultural como forma de combate ao preconceito
4. O desenvolvimento da Associação em si

1. O Controle Social

a. Uma breve explicação do funcionamento do controle social no SUS.

Em 1988 a nova Constituição Brasileira consagra os princípios da Reforma Sanitária, entre eles, o da participação da comunidade no Sistema Único de Saúde.
Em 1990, a Lei 8.080 e principalmente, a Lei 8.142 definem que esta participação se dará nos níveis federal, estadual e municipal através das respectivas Conferências e Conselhos de Saúde.
A forma mais direta e convencional de exercer o controle democrático sobre o sistema de saúde e de saúde mental é através dos representantes de usuários, familiares, trabalhadores, gestores e representantes da sociedade civil nos conselhos de saúde, em seus diversos níveis (local, distrital, municipal, estadual e nacional), nas comissões especiais (principalmente a de saúde mental), e nas conferências periódicas, como previsto na estrutura do SUS.
Os conselhos, entre outras coisas, têm como atribuição legal estabelecer diretrizes, estratégias e as prioridades das intervenções (políticas mais gerais, ofertas de programas e serviços) e acompanhar o seu planejamento, orçamentação, execução e avaliação.
Em conseqüência, os governantes e prestadores e os profissionais de saúde tem que deliberar agora em conjunto com os representantes dos usuários. As decisões não mais poderão ser apenas dos eventuais detentores do poder governamental nem também dos técnicos profissionais e prestadores de saúde.

b. As realizações de 2002

Hoje estou atuando junto ao Conselho Municipal de Saúde de Florianópolis, representando a Associação dos Usuários do NAPS (AUN). As principais conquistas de 2002 foram a criação da Comissão de Saúde Mental, o debate em grupo de trabalho específico sobre o mesmo tema, na Conferência Municipal de Saúde e a luta pela inclusão de temas de interesse dos usuários no plano municipal de saúde, como a reforma da sede do NAPS.
Participo, desde o final do ano de uma ONG chamada “Fórum Popular Estadual de Saúde”, que participa, entre outros espaços, do Conselho Estadual de Saúde. Estarei lutando pela criação de uma comissão de saúde mental neste Conselho, assim como pela ampliação da discussão aí realizada, pela entrada de entidades e cidadãos que não tenham necessariamente cadeira nele.
No Fórum Popular estou representado o Fórum Catarinense de Saúde Mental, outro coletivo que canaliza o desejo de mudanças urgentes, dentro da discussão da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial. Este mesmo Fórum Catarinense promoveu um encontro em setembro, quando fomos convidados a participar da mesa de discussão sobre cidadania, representando os usuários.
Também no Conselho Nacional de Saúde tenho participado de reuniões trimestrais, em Brasília. Faço parte da Comissão Intersetorial de Saúde Metal, eleito pelo Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, como suplente. Grande batalha vencida foi pela plena implantação do PNASH, que é um instrumento de avaliação dos Hospitais, por onde finalmente vai-se reduzindo as verbas gastas nos manicômios e aumentando as dos serviços substitutivos, como reza nossa lei 10.216/01, a lei Paulo Delgado.

2. A formação e fortalecimento da rede de associações de familiares e usuários de serviços de saúde mental em Santa Catarina.

Participei de várias assembléias gerais do CAPS de Palhoça, como parte da organização da futura Associação dos Usuários do CAPS de Palhoça, que está em plena elaboração.
Visitei a “REPART”, associação de usuários e familiares de Joinville, onde pudemos perceber uma clara evolução no sentido de: tornar-se independente do serviço onde surgiu (CAD) com sede própria, fazer convênios com empresas da região, que garante trabalho e renda aos usuários interessados e a manutenção de cursos de alfabetização e informática, contribuindo para a melhoria de qualidade de vida dos companheiros usuários, seus familiares e amigos.
Pretendo dar continuidade a este trabalho em 2003, levando a boa nova da organização dos usuários e familiares aos 23 CAPS implantados em Santa Catarina hoje. Estou estudando a melhor forma de captar recursos para realização deste projeto, assim como elaborar material escrito e áudio-visual visando auxiliar no processo.

3. A atuação cultural como forma de combate ao preconceito.

Neste sentido realizei a cartilha “O Vôo Interrompido”, como parte da disciplina “Formação do Empreendedor”, do curso de pós-graduação de Engenharia de Produção, da UFSC. Agradecimento à professora Sônia Pereira e todos os colegas de turma, destaque especial a Laudinéia Santos, por sua paciência e persistência.
Também está em pleno processo de elaboração o vídeo “10.216”, que estou criando com o apoio incondicional do pessoal do GUDA (grupo de usuários de drogas antipsicóticas), sediado no NAPS. Já realizamos as filmagens e agora estamos procurando parceria para editar o material. A proposta principal é mostrar a trajetória de um usuário, entre a internação no manicômio e a chegada ao serviço comunitário substitutivo, evidenciando as situações do cotidiano que “enlouquecem”, no trabalho, na família, na escola e assim por diante. Apesar de ter uma característica dramática, em vários momentos optamos pelo humor para caracterizar as situações.
Estive presente falando em algumas universidades, convidado por alunos e professores, para falar sobre a participação dos usuários e familiares na reforma psiquiátrica. Em 2002: na psicologia da UNESC, Criciúma; na Psicologia da UNISUL, Palhoça e na enfermagem da UFSC, Florianópolis. Estas foram experiências muito ricas, visto que pude levar um pouco da realidade aos acadêmicos e receber incentivo para permanecer firme na luta.

4. O desenvolvimento da Associação em si

O dois principais pontos neste sentido foram:

a. A promulgação da Lei Municipal de Utilidade Pública nº 6050 de 17.07.02, contando com o apoio da equipe do Vereador Márcio de Souza/PT (autor do projeto de lei), na Câmara dos Vereadores e do pessoal do Deputado Volnei Morastoni/PT, na Assembléia Legislativa de Santa Catarina.
b. A formulação de um projeto para a manutenção da AUN e a criação de oficinas geradoras de renda, junto à Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis. Tendo sido este recebido e analisado pelos profissionais especializados daquela secretaria, estamos aguardando para dar seguimento a sua implantação.

















Principais eventos que participei em 2002

Congresso
XX Congresso Brasileiro de Psiquiatria – “O encontro terapêutico na psiquiatria” - Fpolis – Outubro.
VI Jornada Nordestina de Psiquiatria – IV Jornada de Psiquiatria do Piauí – III Jornada de Saúde Mental Comunitária do Piauí - “Saúde Mental no Hospital Geral” – Teresina / PI - Agosto

Conferência
V Conferência Municipal de Saúde – Fpolis – Dezembro
Pré-Conferência Municipal de Saúde – Joinville – Novembro

Seminário
I Seminário de Saúde Mental do Hospital Regional Hans Dieter Schmidt – Joinville – Setembro

Plenária
XI Plenária Nacional de Conselhos de Saúde – Brasília – Dezembro

Fórum
III Fórum Social Mundial – Porto Alegre – Janeiro 2003
Fórum Catarinense de Saúde Mental – Fpolis – Junho

Encontro
Encontro Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial – São Paulo – Março e Novembro


A participação de outros usuários do NAPS também foi muito importante no ano que passou. Destaco:

a. . Olina – Conferência Municipal de Saúde e Fórum Catarinense de Saúde Mental
b. Fernando Spinato – Fórum Social Mundial, Fórum Catarinense de Saúde Mental, Comissão de Saúde Mental do Conselho Municipal de Saúde, Conselho Municipal de Saúde, Assembléia Geral do CAPS de Palhoça, Conferência Municipal de Saúde.
c. Geni – representante dos usuários na comissão de avaliação das internações involuntárias do Ministério Público de Santa Catarina, participou do Congresso Brasileiro de Psiquiatria.


Florianópolis, 27 de Setembro de 2002

Caros Senhores


Será um sinal de amadurecimento, para todos os atores envolvidos na reforma psiquiátrica, se, e quando, um usuário do serviço de saúde mental for aceito pela academia, para discutir a atenção psicossocial. Como dizem os usuários norte-americanos no livro do Richard Weingarten, O movimento dos usuários em saúde mental nos Estados Unidos: “Nada sobre nós, sem nós”. Isso, considerando também aquele critério de avaliação do grau de recuperação do usuário, que avalia medindo da seguinte forma: quanto mais o usuário interferir na gestão do serviço a que estiver ligado, melhor estará sua saúde mental.
Trazemos subsídios do recém lançado Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental, publicado pelo Ministério da Saúde, onde no capítulo que fala de recursos humanos, temos:

“Nesta mesma direção, a política de recursos humanos deve estimular a dissolução do ‘manicômio mental’, implícito no saber científico convencional, que discrimina o saber popular, por meio da maior valorização da experiência de familiares e usuários, garantindo desta forma a integração e o diálogo com saberes populares”.

E ainda indica, no mesmo tema:

264. Envolver e capacitar a sociedade civil que desenvolve ações em saúde mental (...)

Durante esta especialização pretendemos aprofundar a discussão do papel das associações de usuários e familiares, além das cooperativas de trabalho, no contexto do serviço de saúde mental, procurando perceber seu papel não apenas como geradoras de renda, mas na construção do controle social, pilar fundamental do SUS.
Pessoalmente, também buscaremos subsídios acadêmicos para incrementar e validar um discurso que, hoje, ainda está baseado nos percalços da realidade cotidiana, para que possa alcançar outros espaços de discussão e disseminar em nosso Estado as imensas possibilidades dessas esferas de atuação, propostas e exercidas via sociedade civil organizada.
Sempre que surge uma possibilidade de transportar uma experiência de transformação tão intensa de vida, como a que tenho experimentado nos últimos anos, para um espaço de reflexão e pesquisa, como o proposto pelo curso, entrelaçando minha experiência pessoal à formidável transformação que está sendo realizada pela reforma psiquiátrica, sou forçado a observar de uma perspectiva um pouco mais afastada e necessariamente passar a percebendo que:
· Passei da condição passiva de portador de um transtorno mental, massacrado pelo estigma de uma suposta incapacidade de fazer minhas escolhas pela vida, como: trabalhar, ganhar dinheiro, ter uma companheira, viajar, fazer amigos;

· Para a condição de líder dos usuários na luta pela cidadania, frente à Associação dos Usuários do NAPS, militando no movimento nacional da luta antimanicomial, representando este na Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde, como Conselheiro Municipal de Saúde de Florianópolis, dando palestras em cursos de Psicologia, Enfermagem e ainda participando dos vários encontros, jornadas, conferências, fóruns, pelo Brasil afora, onde inclusive atuamos em mesas de discussão de qualidade dos serviços.
Ora, minha história acaba sendo a mesma de muitos outros companheiros usuários que estão de mangas arregaçadas, nas: cooperativas, associações, oficinas e serviços, buscando pensar sua experiência já de uma maneira mais coletiva, compreendendo a força de mudança que estamos sustentando, contando com o apoio valoroso e idealista de profissionais de saúde, gestores, universidades e comunidade como um todo.
Entretanto em Santa Catarina tudo isto é muito novo. Enfrentamos ainda sérias dificuldades relacionadas a nossa inexperiência com a atenção ao portador de transtorno mental. Nosso olhar, na condição de usuário, ainda permanece, muitas vezes, autocomplacente. Nossas famílias e mesmo a sociedade, continuam nos pretendendo inúteis, incapazes ou meras vítimas irrecuperáveis de um mal sem cura. Esse é o verdadeiro desafio que temos de aceitar, ao atravessarmos as portas dos serviços. Desejamos permanecer nesse lugar, muitas vezes cômodo, porque conhecido, ou aceitaremos o desafio de construir uma nova imagem, essa sim, cheia de incertezas, sucessos, decepções, dores e encontros, mas que representa uma oportunidade real de vida nova, uma imagem de luta e superação, visando uma reforma psiquiátrica eficiente e para todos?
No meu caso, lentamente venho descobrindo que meu objetivo de vida está sendo cada vez mais, o de descobrir junto com outros companheiros usuários, que ele também deve lutar para descobrir o seu, seja ele qual for. Retomando o poder de escolher o meu caminho, através dos ideais e práticas da reforma psiquiátrica, pretendo fazer parte dessa caminhada na vida de outras pessoas.
Compreendo hoje, que parte importante desta elaboração reside no trabalho remunerado. E não naquele que vê o trabalho do louco apenas como uma forma de ocupá-lo, retirando-o do ócio, para que esteja afastado da sua loucura, como queria Pinel em seu tratamento moral. Também estaremos fugindo da visão de Herman Simon, na década de 20, que pretendia mesmo curar a loucura pelo trabalho, na praxisterapia, laborterapia ou ergoterapia.. Este tipo de trabalho, sendo realizado dentro do manicômio e sem remuneração significativa, acaba afastando qualquer possibilidade de construção de uma subjetividade, e acaba desempenhado uma função cronificante e cada vez mais dependente, além de representar, em muitos casos, mão de obra escrava.
O que buscaremos refletir em nossa pesquisa, é um tipo de empresa social, que nos dizeres de Rosemeire Silva, em seu trabalho: Cooperativas, possibilidade real de uma nova construção, assim define:
As cooperativas são possibilidades mais efetivas de enfrentamento da questão do trabalho para os excluídos, como o são os portadores de sofrimento mental, por serem empreendimentos coletivos, onde além da produção de bens toma-se mais fácil a circulação da vida dos envolvidos; por instituírem uma forma de produção, onde o ganho é proporcional ao trabalho feito e, ainda, por ser onde poderemos construir estruturas capazes de comportar a diferença, rejeitando a estigmatização ou o estabelecimentos de guetos.

Não poderia surgir em momento mais estratégico esse curso de especialização, quando da ampliação do número de serviços de saúde mental em Santa Catarina. Inclusive porque também nesse momento, percebemos um amadurecimento dos atores envolvidos. Também das relações possíveis entre estes serviços de saúde mental e as possibilidades de crescimento pessoal e dos grupos, que acreditam na força das Associações de Usuários e Cooperativas de Trabalho, como forma eficaz de inclusão e recuperação de cidadania dos portadores de transtorno mental.
Quanto ao papel das Associações e Cooperativas no desempenho do controle social, parece-nos claro que este é um poderoso instrumento para conseguirmos construir uma política de saúde mental sólida em nossos municípios. Através da presença das associações de usuários e familiares nos Conselhos Municipal, Estadual e Nacional de Saúde: buscando espaço, via criação de comissão de saúde mental em cada uma destas instâncias, pressionando os políticos para que elaborem, projetem, orcem e executem obras, para que se articule a rede substitutiva de saúde mental. Contribuindo para a discussão, Eduardo Mourão de Vasconcelos, no trabalho O Controle Social na Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde Mental no Brasil Atual, parte do Caderno de Textos distribuído para contribuir nas discussões da III Conferência Nacional de Saúde Mental, Brasília, 2001:

Entretanto, este espaço político de luta nem sempre é ‘dado de graça’, mas conquistado pelas forças e organizações democrático-populares. No Brasil, em muitos municípios e mesmo estados onde a tradição de participação da sociedade civil é fraca, os conselhos são inexistentes na prática, ou muitas vezes apenas formais e manipulados pelas forças políticas dominantes. Em outras palavras, sua efetivação real constitui um processo de luta e conquista, através de uma aliança entre gestores comprometidos, organizações profissionais, organizações populares e de usuários/familiares, sindicatos, etc...

Dito isto, resta-nos agradecer, em nome dos usuários, a iniciativa daqueles que trouxeram esta especialização para Santa Catarina. Certamente ela representará um crescimento e criará mais um importante espaço pra troca de experiências, visando sempre a democratização e a busca cidadania, para todos os envolvidos nesta luta por dias melhores na saúde mental. A todos nós, fé no processo.



Nilo Marques de Medeiros Neto



Florianópolis, 25 de junho de 2003

Entrevista com Nilo Neto, do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

M.- Pra começar...você é um membro da luta antimanicomial}
N.- Eu sou. O quê a gente chama de militante né.Eu não gosto muito dessa palavra porquê parece uma coisa meio militar assim, inclusive a gente tem que pegar em arma e se organizar. Sou. Militante de luta antimanicomial.
M.- E o quê que é isso} O quê significa isso, ser militante da luta antimanicomial}
N.- Acho que a primeira coisa é que a gente acredita em alguma coisa, numa mudança, numa perspectiva nova de relação com as pessoas.Está relacionado com o modelo anterior, que é um modelo manicomial, que foi criado há duzentos anos por um cara chamado Pinel,na França...e ele, percebendo que as pessoas que tinham um transtorno mental ficavam abandonadas pelas ruas, e não tinham acesso à nenhum tipo de proteção, e eram submetidas há todo tipo de violência e exploração, ele imaginou um espaço protegido onde essas pessoas poderiam ter algum tipo de atenção e tratamento.E ele imaginou esse espaço um espaço isolado da sociedade, e autônomo, que as pessoas que fossem morar nesses espaços, que depois passaram a ser chamadas de colônias, de manicômios,ali também passassem a produzir seu alimento, sua roupa. Eu não sei te explicar se como modelo isso foi anterior ou posterior às colônias de leprosos, eu acho que num primeiro momento até foi bom, foi importante, houve um melhor tratamento dessas pessoas, apesar delas serem isoladas das suas famílias, não terem mais contato...por causa da doença também, do sofrimento que ela implica, e do isolamento do mundo que ela em si já traz, as pessoas conseguiram alguma paz e alguma melhora na qualidade de vida. Acontece que nos anos 50,do século passado, começaram a ser descobertos os novos medicamentos também, e esses medicamentos também contribuíram pras pessoas adquirirem um pouco mais de consciência também, elas não eram mais tão animalizadas, bestificadas, elas conseguiam manter, com esse tipo de acesso à medicamentos à conviver com outras pessoas da comunidade; e esses medicamentos foram melhorando de qualidade, e as pessoas foram tendo mais consciência de quem elas eram....alguns profissionais de saúde....e aí a gente já ta no final dos anos 70, no Rio de Janeiro, começaram a notar, que nesses manicômios as pessoas não tavam mais...ao invés desse primeiro sentimento de proteção, elas tavam eram excluídas da sociedade, e submetidas à um tratamento cruel, dentro de espaços muito definidos e fechados...em hospitais gigantes, acho que o Pinel do Rio de Janeiro tinha 18 mil pessoas vivendo lá dentro, era uma coisa gigante, estranhíssima, e...inconformados com esse tratamento, houve uma época aqui no Brasil, e aí pega também junto com a Revolução dos militares, do Golpe de Estado, houve um crescimento muito grande, assim, pulou de 200 pra 600 hospícios no Brasil.E aí os militares começaram a colocar lá dentro e torturar não só loucos, mas loucos, dissidentes políticos e todo esse tipo de situação que a gente sabe que no Brasil teve.Então esses profissionais de saúde aí por 78,77...um deles chamado Paulo Amarante , do Rio de Janeiro, e desse a gente tem notícia, pessoalmente eu conheci o cara...ele botou essa história...tava num mega hospital desses...
M.- Internado}
N.- Não, ele é psiquiatra.
-
N.-E não se conformando com aquele estado, das pessoas tarem sendo jogadas fora, tratadas como bicho,resolveu enfiar o pé na jaca, resolveu fazer uma denúncia daquela situação,eu não sei se pro Conselho de Medicina ou pra imprensa, eu sei que ele fez a denúncia e automaticamente foi pra rua , desse trabalho no hospital...e mais uns 20 ou 30 profissionais que trabalhavam nesse hospital, em solidariedade à ele também se desvincularam desse hospital...e essas pessoas passaram a se reunir um outro espaço no Rio de Janeiro, num outro lugar, que também já tinha haver com essa questão da retomada democrática do Brasil, postura crítica à ditadura...e criaram o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental.
M.- Que eram profissionais da área de saúde}
N.-Profissionais da área de saúde. Principalmente psiquiatras, mas eu acredito que também outros, né..enfermeiros, assistentes sociais...pessoas que se identificavam e não estavam mais satisfeitos com esse modelo manicomial...esse modelo de exclusão, de isolamento e propunham uma outra forma de tratar.Mais ou menos por essa época, mas aí na Itália, numa cidade chamada Triesti,um outro psiquiatra Italiano, chamado Franco Basália, promoveu uma grande revolução que ele fechou um Hospício lá.Mas fechou...assim...tirou as pessoas de lá e jogou a chave fora.Sem ter necessariamente uma estrutura pré-determinada na rua pra receber essas pessoas.Mas a gente ta falando da Itália, que é um país que tem já uma visão de mundo que permite algumas ousadias desse tipo. Ser abandonado na Itália não significa ser abandonado no Sirilanca ou no Brasil, né...é outra relação.....Mas aí o Franco Basália com algumas outras pessoas, começou a pensar uma forma de tratamento que fosse dentro da comunidade...Grupos, com oficinas, espaços físicos,espaços dentro da sociedade, que permitissem essa inclusão. Então aqueles profissionais brasileiros também entraram em contato com essa experiência e começaram a trazer a idéia pro Brasil. Em 1987, houve uma...acho que foi o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, aqui em Balneário Camboriú, e logo depois em uma cidade chamada Bauru em São Paulo, foi então que surgiu o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, que agregava então não só os profissionais de saúde mas a sociedade...não como um todo...mas de outras áreas.Inclusive usuários e familiares.Nessa época também já começou no Brasil um desejo de implantar uma lei que representasse o desejo de mudança de modelo manicomial para o antimanicomial, que é esse comunitário.Então um deputado de Minas Gerais chamado Paulo Delgado, entrou com um projeto de Lei no Congresso Nacional, e os estados, Rio Grande do Sul, o Ceará, acho que Rio de Janeiro, São Paulo...começaram a fazer leis estaduais também. Falando que não deveria se construir mais manicômios, que deveria se construir o que passou a se chamar da CAPSI...e essa lei ficou pra ser aprovada no Congresso Nacional por pelo menos 14 anos...até que em 2001...no dia 06 de Abril de 2001, então a gente teve essa Lei 10.216, que é uma lei que indica essa nova forma de tratamento...com uma série de mudanças, porquê os manicômios também têm interesses financeiros....os donos de manicômio ficam muito ricos... o governo gasta muito dinheiro com isso no Brasil...então existe ainda esse embate de forças entre os que acreditam ainda numa postura de saúde para todos, pública, de qualidade...e os outros que preferem que ela permaneça de má qualidade, grandes hospitais dando lucro pra uma meia dúzia, e essa luta continua...mas a Lei já passou...a lei é bem simples, é pequena, tipo uns 40 artigos, um pouco menos até..
M.- Quarenta artigos...é pouco isso}
N.-Pra estrutura brasileira é. Um dos dos argumentos dos que são contra diz: Ah, a lei de cães e gatos de São Paulo tem 100 artigos...mas é que aqui no Brasil a gente não ta acostumado a ter esse tipo de lei, que não se preocupa com a minúcia, mas com a idéia principal...como uma coluna vertebral onde a gente fosse colocando os elementos de construção à partir da evolução dos grupos sociais...a proposta do Paulo Delgado, que é do PT inclusive, é fazer uma lei que indicasse um caminho só,e a partir da nossa vivência como grupo de luta antimanicomial, a partir da nossa realidade,dentro de ministérios e secretarias, nos movimentos de cada Estado, a gente fosse construindo essa nova idéia...resumindo o quê ele disse, que eu conversei com ele , há menos de um ano de saída da Lei, ele disse: olha a gente precisa transformar essa lei em movimento social....porquê senão ela não faz sentido, ela não existe.
M.-Transformar a lei em movimento social} Em que sentido}
N.- Exatamente por isso, porquê ela tem essas características....se ela fosse assim, com fórmulas prontas...do jeito que a gente quer fazer, assim...construir uma casinha rosa,com tantos lugares, pelo Brasil......a gente sabe que isso não funciona na prática, porquê na realidade de Santa Catarina é diferente do Piauí,é diferente do Amazonas...e a lógica de tratamento que tá proposta.....antes era assim: você tirava o portador de transtorno mental da casa dele, jogava num hospício, e deixava ele lá. Agora a gente quer trazer ele de volta pra comunidade, tratar ele o mais perto possível da casa dele.Pra que isso seja autêntico, a gente precisa atender as necessidades de cada região,cada grupo tem que ter uma forma. Então quê que a gente tá fazendo, essa lei, que é uma lei simples e direta, e á partir dela tem havido vários desdobramentos...como agora essa...”de volta pra casa” , que é uma coisa que o Lula tá trazendo, pra...no sentido financeiro, que é pras pessoas que saem do hospício poderem voltar pra casa e terem um dinheiro...tem um programa de avaliação dos hospitais, que todo ano o Ministério da Saúde faz...que ele vai diminuindo o quanto ele manda de dinheiro pra que cada hospital conforme o tamanho, e a qualidade de tratamento...se tem eletro-choque, se não tem...se as pessoas têm acesso a algum tipo de tratamento além de medicamento ou não...então, gradualmente ir fechando os hospitais...e essa é uma coisa nova que é a história de, esse dinheiro, que tá sendo usado em saúde mental pro hospício, passar a ser usado no tratamento comunitário...que esse dinheiro não se perca nessa transição...
M.- Eu queria que você definisse melhor essa coisa da grana....por exemplo: tratamento com choque, é uma coisa que o movimento antimanicomial é contra ou á favor}
N.- Totalmente contra.
M.- E essa lei do governo dá dinheiro pra quem trata com choque, ou tira o dinheiro de quem trata com choque}
N.-Tá tirando...aos poucos mas ta tirando....a gente aprendeu assim...de novo...é a velha história...a gente vai de baixo pra cima ou de cima pra baixo}Então ta, a gente pega esses 500milhões de reais que são gastos por ano...para de dar pro hospício,constrói um milhão de casinhas, bota uma placa lá na porta escrito CAPSI e acha que ta resolvido o problema...é mentira! Não funciona.e o nosso governo tem muito esse hábito, paternalista, assistencialista, babaca, de impor as coisas pras pessoas... ah, eu tenho a solução pro seu problema....não! Vamos criar juntos uma solução} Vamos. Então como é que é. O dinheiro vai deixando de ser dado aos poucos, os CAPSI estão sendo construídos, mas dentro dos CAPSI, as pessoas que freqüentam aquele espaço é que tão, através da luta antimanicomial, é que tão elaborando associações de usuários, associações de familiares, grupos de trabalho com a comunidade, centros terapêuticos, centros comunitários, onde a gente vai discutir essa inserção do louco na sociedade, no dia a dia, não é uma coisa assim pronta, não é uma fórmula pra você ser feliz,não. Pêra aí...não tem fórmula nenhuma. Vocês querem o dinheiro} Então ta. Vocês se organizem, aí, as pessoas se organizam, aí começa, naquele espacinho do CAPSI a surgir esses outros movimentos...dos quais eu também faço parte...
M.-Outros movimentos}
N.- Inclusive, por uma mudança na cultura, porquê também só construir o CAPSI e não mudar a cabeça das pessoas. O manicômio não é só um lugar, o manicômio é o jeito de olhar o mundo. Então quando você não consegue ouvir o quê o outro ta falando, você tem um manicômio. Quando você chega pro outro lá e diz:” Ah, já sei o quê você quer, você quer um carrão, uma roupa preta, né}”. ” Não! Eu não quero nada disso!” Você tem que ouvir o cara.O quê ele tem pra oferecer, qual é a troca que ele tem pra oferecer....” Ah, quando eu era pequeno eu gostava muito de plantar..”.Bom, então vamos, aqui dentro do CAPSI, arrumar uma estrutura pra tu fazer o quê tu gosta...juntar mais gente, separar um pedaço de terra, vamos estudar que tipo de coisa você vai plantar}AH, é planta medicinal...beleza, então vamos nos juntar com outro grupo, que precisa dessas plantas...é desse jeito que a coisa ta acontecendo..e isso é muito bonito.
M.- E funciona}
N.- (risos). Não é fácil, não é fácil...mas tá funcionando...porquê....tem um problema de motivação assim...você tá lidando com pessoas que tomam medicação...medicação muito forte,as vezes, porquê ela acaba....além da pressão social que te diz que tu é louco, que não serve pra nada, que tu é inútil, o quê nossos pais aprenderam, que a gente aprendeu, você tá lidando com pessoas que tem esse problema da medicação, que corta o desejo, e tá lidando com um problema social, dessas pessoas além de serem loucas, são muito pobres, vivem num estado de miséria, muitas vezes. Às vezes não sabem nem o quê fazer com o dinheiro....não sabem pegar mais ônibus, não sabem comprar coisas na rua...não sabem...perderam o poder contratual...o “ contrato Social” lá do Rosseau, aquelas coisa...então não tem mais....você tem que pegar pessoas desse tipo, que ta nessa base, engatinhando, que tem que dar comida na boca que nem passarinho e dizer: Olha, agora você não é mais um passarinho, você pode voar. Tem experiências muito boas, em Campinas, eles fecharam um hospital lá e construíram residências terapêuticas, que são esses espaços onde as pessoas moram, que não têm mais família, que vão morar nesse lugar...aí essa gente, chega no bairro...bom aí vira o comerciante fala assim: “ Pô! Mas não dá...o cara vai no meu bar, fica falando sem parar, atrapalha a clientela”, e chama o médico que trabalha lá no bairro pra ver o quê ta acontecendo...aí o médico fala:” Não, ah, eu reconheço que são pessoas diferentes, têm um jeito diferente, uma nova forma de ver a vida...mas vamos fazer uma conta aqui, é, mês que vêm, 20 novos pacientes vão receber salário mínimo...”.Aí o cara faz a conta...4.800,00 reais, por mês...aí o comerciante já..” Hum, não é bem assim, o cara é chato, mas a gente dá um jeito”.Claro, isso meche com a comunidade, meche com a economia da comunidade....você tem que criar esse laço, de interesses, da comunidade receber esse sujeito. Não só grana, mas também.A gente tá no capitalismo e não tem como só sonhar com um mundo hipotético.Isso já tá acontecendo em alguns lugares...e tem sido muito bom.Não sem resistência, porquê, como eu falei, tem um preconceito, mas...tá rolando.
M.- Mas falando agora mais sobre o Movimento em si...como ele se organiza. Você falou que primeiro foi uma iniciativa dos profissionais da saúde mental, que se organizaram, e tal, em torno desse novo conceito de saúde e tal...mas como se dá essa organização}Onde é que estão essas pessoas, o quê essas pessoas estão fazendo}
N.- Não, é como a gente tava falando antes...o movimento não é oficializado, não é hierarquizado...ele é aberto assim, você não preenche uma ficha pra fazer parte do movimento, você não paga uma quantia por mês, não tem um dono, não tem uma estrutura...ele é totalmente aberto, anárquico nesse sentido né.E o ponto que eu tava discutindo... foi através do NAPS , profissionais e usuários que já vinham participando de algumas reuniões de discussão...Santa Catarina tem o Fórum catarinense de Saúde Mental, Também é uma estrutura desse tipo, que absorve os desejos de quem tá nessa luta.Eu comecei a freqüentar e fui no Fórum Brasileiro, que teve no Rio de Janeiro, em Outubro de 2001, Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, patrocinado pelo governo do Rio de Janeiro, que alugou lá um hotel na Serra e juntou gente do Brasil inteiro,quer dizer, cada um vem com o dinheiro da sua cidade também, então um tira do bolso, quem tem, ou procura ajuda de alguma ONG, ou do governo.A gente aqui conseguiu grana com a Assembléia Legislativa, com o comércio local, alguns davam Ticket alimentação...os próprios usuários se organizaram, fizeram uma carta e foram à luta.Eu acho que o movimento funciona meio que desse jeito, você antes de tudo acredita na causa, acredita naquilo que tá sendo dito lá, nossa concepção de um mundo melhor, passa por esse caminho aqui, e aí tem essas estruturas, a gente tem uma Secretaria Executiva Nacional, que hoje tá dividida entre São Paulo e Rio de Janeiro, que através dela, da Secretaria a gente troca informações, via internet, carta,telefone, como é possível...e cada em cada estado cada um vai desenvolvendo suas atividades e, eventualmente, a gente tem esses encontros nacionais onde a gente possa discutir essa nova realidade. Então desde 2001 não acontece um grande desses, tem acontecido encontros nacionais menores, aconteceu um em São Paulo, em Março de 2002, e em Outubro de 2002.
M- E essa secretária Nacional então tem uma função própria...qual é a função dessa secretaria}
N.- A última forma que a gente encontrou pra se organizar é distribuída em grupos, comitês,onde as tarefas são designadas...então tem um grupo que tá responsável de organizar o próximo encontro, tem um outro grupo que ta preocupado em trocar informações entre as pessoas do grupo...um grupo que ta preocupado com a parte legislativa, como que a gente vai avançar em relação à lei,e esses grupos são formados por pessoas em vários estados do Brasil, que também trocam informação e mais ou menos nessa base....e cada estado daí tem os grupos...por exemplo: no Rio de Janeiro, tem núcleos das cidades, das regiões e tem o núcleo estadual da luta antimanicomial, aqui em Santa Catarina, como a gente tá reforçando o trabalho do Fórum Catarinense de Saúde Mental,, então a gente não tem usado muito essa nomenclatura de núcleo de saúde mental, mas Florianópolis tem um grupo da luta antimanicomial, em Blumenau tem um grupo de luta antimanicomial, Criciúma...e hoje a gente tem mais desenvolvido o trabalho em torno dos CAPSI, que são os Centros de Atenção Psico-Social, que o estado hoje tem 25, e as pessoas que trabalham e que vão tratar nesses lugares, se reúnem pra conversar, e mensalmente a gente tem reuniões em várias cidades do estado, pra trocar essas experiências...e agora em Outubro a gente tem o grande encontro lá em Brusque, que já é o terceiro, de três dias, em que aí sim, a gente vai colocar a grande carta final, das nossas intenções, da nossa avaliação do quê tá sendo feito na reforma psiquiátrica do estado, e assim por diante...é mais ou menos assim.
E como eu te falei, ao mesmo tempo que tem essa coisa de se juntar, como o movimento não tem uma camiseta, um uniforme, um boné...a gente acaba internalizando as coisas e passando a ser um espalhador de idéias, uma semente onde quer que a gente vá.Eu tenho tido chance de falar nas universidades, mas eu também falo com as pessoas no ônibus, quando eu tenho chance,que eu vejo que o assunto tem haver, sabe, cada um é também a luta antimanicomial. Estamos falando da teia né. Então é isso, cada indivíduo carrega consigo a complexidade do grupo todo.Dependendo do seu grau de consciência e mobilização.
È muito estranho estar num lugar sem pai nem patrão, mas depois que a gente acostuma, fica muito ruim ficar num lugar que tem pai e patrão.(risos)
M.-O quê você quer dizer com isso}(risos)
N.- Que quando você aprende a autonomia, você quer que a autonomia vá pra todo mundo.Mas ela funciona de maneira diferente pra cada pessoa. Você tem que também ter paciência pra conviver em um espaço que tem outra hierarquia outra forma, outra construção.A gente tava conversando antes sobre a história de grupo né, de querer pertencer a grupos...foi o único grupo que eu consegui pertencer até hoje, de corpo e alma por isso, acho. Todos os outros grupos têm aquela coisa de ter um guru, de ter um mestre, tem um pai, tem um professor, e eu acabava me rebelando com essa cultura. Na luta antimanicomial eu só consigo me rebelar comigo mesmo, assim, é que nem morar sozinho e fugir de casa.É o máximo que eu consigo fazer....(risos).
M.- Mas quem toma as decisões}Porquê...tem uma relativa estrutura, que não é hierarquizada, é autônoma né}Mas ao mesmo tempo existe um coletivo...
N.- O coletivo é esse secretariado, né, e a gente tem também em Brasília, no Conselho Nacional de Saúde, uma Comissão Interdisciplinar de Saúde Mental, com algumas cadeiras, onde as pessoas do movimento, são eleitas dentro do movimento, pra representá-lo e trazer as informações, no caso até eu sou uma delas. Esse é um outro espaço de poder que a gente tá ocupando,as decisões são tomadas nos encontros....como a gente tem essa linha de atuação, é comum, mas que existem divergências, a gente não é um corpo assim tão homogêneo, né. Mas em geral a gente tem uma coisa em comum, a gente é contra o manicômio, contra o eletro-choque e à favor do tratamento comunitário, mais humano e digno né.As decisões pessoais são em torno desse eixo.E no grupo, a gente procura, nessas reuniões que são feitas nos estados e municípios, pra quando as ações são feitas, por exemplo...no dia 18 de Maio, a gente tem o Dia nacional de Luta Antimanicomial, então, cada estado, cada cidade, tem lá o seu grupo, procurou demonstrar isso de alguma forma, aqui em Florianópolis esse ano, a gente fez, em parceria com a Universidade Federal, uma semana , o Terceiro Encontro Catarinense de Saúde Mental.
A gente chamou gente pra falar de outros lugares, na quinta, na sexta-feira, a gente fez o chamado “ NAPS aberto à comunidade” , que a gente fez oficinas, que em geral são pra pessoas que estavam se tratando, mas abertas à quem quisesse conhecer.Então vai lá, senta, faz música, faz teatro, vende os nossos produtos, que a gente tem na associação produtos também pra vender...produtos artesanais, mosaico, cerâmica, velas decorativas, teve o lançamento de um livro de uma usuária...eu fiz um filme, e também mostrei pra galera,esse tipo de coisa. E foi bem bom. Em Joinvile também teve eventos no shopping center, também chamaram a comunidade pra conhecer os trabalhos, nos outros lugares eu não tive notícia ainda do quê aconteceu.
Em Minas Gerais tem uma escola de Samba que chama ” Liberdade ainda que Tantâ” ...que sempre nesse dia 18 de maio, pára a cidade e sai todo mundo batucando, então...é desse jeito que a coisa acontece...é pelo contágio mesmo...
M.- E essa comunicação, como vocês se comunicam, fazem contato...porquê se tá rolando uma coisa em cada lugar....a comunicação não é cósmica né}
N.- Olha, geralmente é pela Internet.Teve agora um companheiro nosso chamado Austregésimo Carrano, que escreveu um livro chamado “ O canto dos malditos”, que deu origem àquele filme “ O bicho de sete cabeças”, que tá sendo processado pela justiça do Paraná...então rolou uma lista, pela Internet, as pessoas se mobilizaram e participaram dessa lista, a gente teve até lá em Curitiba no dia do julgamento, veio um pessoal de São Paulo, a gente foi pra rua com faixas...então a gente tem usado muito a Internet, mas já houve também situações de tele-conferências, assim, que é por telefone, faz uma mesa, de 10, 15 pessoas, cada um fala um pouco e tal, de cada estado, já aconteceu. Eu acho que até o final do ano vai ter um encontro nacional.




M-. Agora, que eu já entendi como funciona o movimento, eu queria saber, porquê que você foi parar lá dentro.
N.-Então, à partir da experiência de ser diagnosticado como portador de transtorno mental, de uma situação de quase internação, ou de uma internação em casa, e á partir daí eu fui sendo apresentado á alguns grupos , de acompanhamento, de tratamento, no começo, em volta do próprio hospital, lá em São José, que se chamava “grupo dos usuários do lítio”, e daí à partir desse grupo eu conheci um outro grupo aqui no centro, de auto-ajuda,chamado “ psicóticos anônimos”,que tem a mesma lógica, dos narcóticos e dos alcoólatras anônimos: “ Só por hoje”. Nesse grupo de auto-ajuda, eu conheci um cara chamado Gabriel, que me convidou pra fazer parte de um grupo de teatro no NAPS,e aí fiquei mais ou menos um ano indo nesse grupo de teatro, e depois resolvi me integrar mais no NAPS, fazer outras oficinas, comecei a tratar com o psiquiatra de lá, aí em determinado momento, uma pessoa, dessa associação dos usuários do NAPS, um cara chamado Tamasio, que vivia sempre por lá e perguntou se eu não queria participar da associação.Isso foi mais ou menos em agosto de 2001.
M.- Participar como }
N.- É assim, ele tava meio que tocando sozinho, ele era tesoureiro, e as outras pessoas estavam assim, não davam muita atenção, não tavam se envolvendo muito. Aí ele me convidou pra participar, como secretário, assim, pra...por exemplo logo sem seu ida teve essa viagem pra Miguel Pereira, aí ajudar a escrever documento pra pedir dinheiro, sair pela cidade contatando as pessoas pra conseguir verba pra viagem, e...ajudando a organizar a associação, fazer um regimento interno...coisa que ainda não tem, diga-se de passagem...e aí a gente também, ficou amigo e tal, e ele me levou no conselho municipal de saúde, pra conhecer os trabalhos, até que chegou essa viagem pro Rio de Janeiro... daí eu meio que caí de paraquedas lá no encontro Nacional, não conhecia muito o quê tava acontecendo, nem do movimento, nem da reforma psiquiátrica, de nada, eu só freqüentava o serviço de saúde mental.Daí eu levei um puxão de orelha, desse Tamasi aí, me chamou “na xincha”,como fala o gaúcho, que me perguntou que que eu tava fazendo lá,e eu fiquei meio possuído pelo demônio, e resolvi ....
M.- Ficou possuído pelo demônio} Como assim}
N.-Assim, fiquei bravo, fiquei irritado, machucou, doeu.Daí eu resolvi me vingar,acabar com a vida dele, tirar ele de todos os espaços,que ele tinha conquistado assim.Mas eu me dei conta que se eu fosse fazer isso, eu iria ter que substituí-lo,essa ficha veio junto, essa informação, quando eu tava digerindo aquele soco que eu levei,assim, eu fiquei pensando...aí foi o quê aconteceu. Vim pra Florianópolis, fiz uma aliança com os inimigos dele, que eram os profissionais do NAPS na época, que tinha atritos e tal, e me candidatei à Presidência da associação, e a gente foi eleito, né, a chapa, 2002 né. Em seguida teve um encontro lá em São Paulo da luta,onde eu fui eleito pra essa posição em Brasília...
M.- Foi a época que a gente se conheceu, não foi} Um pouco antes}
N.-Acho que sim,Março, um pouco depois....
M.- A gente se conheceu no final do ano passado...
N.- Então já tinha algum tempo.....e aí eu comecei à conhecer melhor as pessoas que faziam parte do movimento, porquê eu tive...fui colocado nessa posição lá, e é um lugar de poder...aí as pessoas olham pra ti, querem conversar contigo, querem te ouvir....e aí comecei a freqüentar também mais o Conselho de Saúde.......A vaga lá no Conselho Municipal não era dele, era da associação.
M.- Do Tomasi}
N.- Tamasi.É.
M.- Ele é japonês}
N-É. A mãe é nordestina e o pai é japonês.
M.- E ele é usuário}
N.-É, usuário...
M.- Pois é.. na associação só tem usuário}Quem participa}
N.-Usuário, familiar e profissional de saúde, técnicos como a gente chama.
A associação deve ter acho que umas 50 pessoas...familiares acho que a gente não tem, na nossa aqui em Florianópolis,associado.
M.- E o pessoal da decisão} Os usuários participam muito}Porquê você é um caso especial, como usuário..não é comum entre eles...
N.-É, sou...não é comum. Acho que com os usuários o negócio funciona muito na base da recompensa imediata assim.Tem lá uma briga pra conseguir passe, passe livre, pra conseguir alimentação, aí rola. Mas quando é uma coisa mais difusa, uma coisa mais aberta, mais ampla, aí a coisa é mais difícil de mobilizar, de conversar, de convencer. Mas ta rolando assim,aí, agora em 2003 eu já passei a ser vice numa outra chapa, uma chapa de oposição, mas que aí juntou porquê não rolou eleição direito, de qualquer jeito outras lideranças já tão surgindo. O que ficou convencionado é que eu faria trabalhos pra fora da associação, participar do Conselho (Municipal de Saúde), dos eventos e tal...e lá dentro do NAPS...porquê eu tenho muito atrito com ele lá, porquê eu tenho uma visão diferente assim...eu sou muito crítico diante das situações, até já tive atritos grandes com o pessoal de lá, sobre, de quê jeito que as coisas são feitas, de que forma a gente pretende cuidar dessas pessoas, de quê tipo de reivindicação que a gente pode ter em relação ao trabalho que é feito lá,eu tenho uma relação muito crítica por exemplo à esse espírito do funcionário público, acho que quem trabalha com saúde mental, não pode ter aquele pensamento: olha eu entro no trabalho ás oito e saio ás seis e acabou, sabe, tem que haver um envolvimento maior, tem que haver um amadurecimento político, que alguns que são funcionários públicos que tão ali não têm, simplesmente não têm, simplesmente passaram no concurso e foram pra lá.Então é difícil lidar com essa gente, mudar a cabeça deles, fazer eles entenderem que eles tão dentro de um processo maior.
M.- Você vê a luta antimanicomial então como um processo}
N.- Ah, totalmente.
M.- Não tem um fim único... é um processo em andamento...
N.- Claro, porquê tem uma proposta de mudança de cultura, de jeito de pensar. E jeito de pensar é todo dia, o dia todo.
M- Mas ao mesmo tempo, essas propostas de cultura incluem propostas de políticas, não é só uma questão cultural...
N.-A gente tem uma posição bem clara; que a gente acredita que saúde é um direito de todos e um dever do estado.Então a gente tem uma conexão direta com as posições de esquerda, dentro do movimento, em geral, os usuários...o pessoal que tá envolvido tem uma ligação até quase que partidária, com a esquerda. Mas pra além disso, a nossa exclusão, como portadores de transtorno mental, ta claramente ligada à incapacidade de produção de renda. Assim como os velhos, os loucos, os travestis; a gente tem uma dificuldade de gerar, de ser um dente na máquina do sistema capitalista,entendeu} A gente é um empecilho pra essa gente. E isso tá muito claro, tanto na nossa postura contra os barões da industria da loucura, que são os donos de hospitais, os donos das grandes empresas farmacêuticas, que são os caras que lucram com a miséria alheia, e a gente quer sempre esse grito de dizer:” Não, a gente não aceita isso, a gente quer uma coisa nova”.Daí também a gente tem lutado pela cooperativa de geração de renda, que é uma forma de trabalho solidária, que tem funcionado em muitos lugares do Brasil, e que a gente tá tentando implementar aqui, via associação. Então os grupos se reúnem em torno de capacidades que os próprios indivíduos ali demonstram...deveria ser assim, porquê é difícil também na prática né.Mas vamos fazer uma suposição...tem um companheiro nosso que, antes de enlouquecer ele trabalhou durante muito tempo numa olaria, produzia telha, materiais de barro. Daí ele traz aquela capacidade pro grupo e, com outras pessoas que também se sentem à vontade fazendo aquilo e começa a produzir peças utilitárias lá, vasos de cerâmica pra botar planta...a gente tem um forno....
M.- Têm um forno}
N.- Tem um forno. Aí depois a gente pega esse material e leva pra vender, mas não leva pra vender em guetos, a gente não põe uma placa:”Aqui produtos de pessoas coitadinhas, compre”. Não, a gente quer competir com qualidade, esse trabalho é vendido com outras pessoas de outros grupos que também produzem, e a gente consegue vender bem.
M.- Consegue}
N.-Sim.
M- E essa renda vai pra quem}
N.- Pros usuários e uma parte também pra associação pra reverter também na organização desse trabalho e também na compra de material.
M.- Ou seja, é uma forma de...uma organização econômica.
N.- O principal objetivo da organização é a geração de renda.
M.- Geração de renda}
N.-É. Num espaço solidário, aí é que tá.
M.- Mas e você}
N.- Bom, como eu ganho mesada (risos)...a minha vida já tá mais garantida, eu fico pensando em outras maluquices tipo assim, sobre por exemplo, essa que eu tava falando, da parte sócio-pol-itica- cultural, agitação nesse sentido.Criação de consciência, politização das pessoas que tão lá...estímulo de líderes, novos políticos, pensamento maior, produção de livro, filme, cartilhas, a gente fez cartilhas...um monte de coisa bacana rolando por aí. Dar palestra...é isso que eu tenho feito...
M.- Você é o intelectual orgânico do movimento...
N.-(risos). Eu tinha uma angústia muito grande quando eu tava começando a me identifica com essas coisas de esquerda, e ...porquê eu sempre via o trabalhador do campo e o trabalhador da cidade, até na foice e no martelo né, e eu falava:” Pô, aonde eu me encaixo}”. Mas aí um dia eu vi um mural pintado, uma coisa da arte socialista, da união soviética, então aí tinham três pessoas, era um intelectual, o trabalhador do campo e o da cidade, ...aí me aliviou um pouco a culpa (risos).
M.- Mas mesmo assim, nesse sentido você é um militante engajado, o intelectual orgânico do grupo, mas não necessariamente você é sustentado financeiramente por essa estrutura}
N.- Não. O quê eu eventualmente recebo é assim, quando eu vou a Brasília, pra esse conselho por exemplo, eu ganho a passagem e uma diária, de 125,00 reais mais ou menos, que seria pra pagar o hotel.
M.- E quem paga}
N.- O Governo Federal, o Ministério da Saúde.
M.- Então vocês têm apoio do Governo nessa luta antimanicomial}
N..-É.
M.- Porquê eu tava pensando... todo movimento precisa de renda...independente dessa estrutura que ajuda os usuários a se manterem,pessoalmente, o próprio movimento precisa de uma ajuda financeira.
N.- É nessa hora que fica capenga, que, por a gente não ser registrado, não ter uma ONG, uma organização muito clara, é mais difícil conseguir verba, com os outros movimentos sociais, no estrangeiro, com o governo, que é o quê acaba acontecendo, então as coisas, passam muito pelos grupos menores, pelos indivíduos e pelos pequenos grupos de cada estado, e a gente trabalha por evento... e isso faz falta. Em Minas Gerais por exemplo, o Fórum mineiro de saúde mental já tem uma estrutura formal, registrada, e aí sim, eles conseguem estabelecer convênios, com FAT,com outras entidades que financiam essa capacitação para o trabalho, com geração de renda, formação política, tudo isso é feito com o dinheiro mais....né. E pessoalmente ,eu vejo iniciativas assim, de usuários que como Carrano, que escreve o livro, vende o livro;outro lá, faz poesia, o outro pinta camiseta,entendeu} Mas são ainda coisas pequenas, artesanais mesmo, craftwork, mas aí é que ta...existe uma discussão entre nós sobre passe-livre, se a gente deve procurar enquadrar com o pessoal de deficiência física e mental, que tem uma lei que garante uma participação de 10% em uma empresa com mais de 100 funcionários, pra quem tem essas deficiências, e aí a gente pensa, pôxa, o cara já enlouquece porquê ele não consegue agüentar aquela forma de trabalho, com a pressão do capitalismo, a competição interna dentro de uma empresa, o desrespeito mínimo da sensibilidade de cada um., de ser transformado em máquina,as pessoas enlouquecem por causa disso,então se você pega alguém que enlouquece por causa disso, que vai buscar tratamento, aí você diz pra ele; “Agora volta”, Você melhorou um pouco, agora volta pra indústria, volta pro comércio. Sabe, até tem gente que faz isso, que é feliz dessa maneira...isso não tem fórmula, mas eu acho que a gente tem que criar um espaço novo, e esse espaço novo pode servir como exemplo também pra sociedade, entende} Essa relação de trabalho a gente, por força da nossa doença, da nossa sensibilidade, da nossa incapacidade de adaptação,a gente ta tendo que buscar. Eu acho que essa troca pode ser muito legal. Quando se fala em inclusão social, eu fico muito assustado, porquê me faz pensar justamente isso: estão querendo nos incluir no quê} Perguntaram pra gente se a gente quer ser incluído nessa sociedade que ta proposta} Eu acho que, inclusão só funciona, se dos dois lados houverem mudanças, tanto a gente abdicar de algumas dores, algumas coisas que a gente se apega, quanto a sociedade também estar aberta pro diferente, pro novo,e aí quando essa inclusão é desse jeito,todo mundo propondo uma coisa nova, ela é uma coisa possível, mas quando ela é unilateral, ela diz assim, Ah, coitadinhos dos loucos, vamos dar uma chance pra eles, a gente não quer...eu sempre falo isso, a gente não quer piedade, a gente não quer esmola, a gente quer oportunidades...e oportunidade significa também mudança.Acho que isso tem uma carga política muito forte.
M.- Uma mudança estrutural
N.- Sim, e por isso é que é um processo,a luta é um processo, o movimento antimanicomial é um processo. Não é uma coisa que se possa avistar no horizonte , que teve muita gente no movimento que achou que assim: Ah, quando a lei for aprovada, alcançamos um paraíso, não precisamos mais fazer nada. Houve até uma encrenca interna no movimento, uma luta de poder que gerou problemas graves dentro da luta hoje.
M.- O quê que aconteceu}
N.- Foram duas coisas, uma foi essa, da chegada da lei, pra alguns avistando como um esvaziamento do movimento, a não necessidade de continuar lutando...e também dentro do movimento, que foi criado pelos técnicos, mas que á partir do crescimento do que tava sendo proposto, mas que os usuários e os familiares também foram crescendo em organização, em consciência política e em reivindicação de espaço.Mas muitos desses técnicos não souberam entender essa mudança, e aí houve meio que uma racha no movimento, uma parte querendo que a coisa continuasse sendo como era, com eles lá manipulando, e fazendo as coisas...os grupos que já tinham alguma estrutura....e essa força nova, porquê houve um encontro nacional só de usuários e familiares em Goiânia em 2000, e nesse encontro houve um embate, porquê os técnicos chegaram e houve um embate, porquê os técnicos chegaram e os usuários e familiares falaram” não a gente quer agora discutir internamente, a gente não quer a presença de vocês”. E isso causou um mal estar muito grande dentro do movimento. Eu acho que os encontros não devem ser setorizados, mas eles devem ser organizados por temas. Tipo assim: olha, a gente vai discutir a situação do usuário e familiar,mas todo mundo discute junto.A gente vai discutir a qualidade do trabalho dos trabalhadores, mas todo mundo discute junto.Entende} E acho que essa compreensão não ficou clara naquele momento.Até porquê se a gente for imaginar, por ser um movimento muito novo,as lideranças de usuários e familiares,é como se a gente tivesse sido gerado naquele útero dos técnicos, tivesse nascido, eles tivessem nos alimentado na nossa capacidade de organização,e a gente tivesse num determinado momento adolescido, e o adolescente ele se rebela contra os seus pais, é normal isso. O problema é quando os pais, não entendendo esse movimento, resolve chutar os adolescentes pra rua, ou resolve criar e fazerem voltar a ser criança,acho que todo esse processo político-psicológico-sociológico,também houve dentro do movimento, e ele ta sendo ainda...a gente ta tentando aprender a lidadr com isso tudo, o quê não é fácil.
Agora com essa situação do Carrano, aglutinou de novo um pouco. Houve um olhar mais suave de parte à parte.mas é muito difícil, houve muita dor, muito sofrimento, muita gente se sentiu muito mal, revoltada... eu cheguei novo né, eu cheguei novo na coisa.Isso também foi uma coisa que me ocorreu, eu pensei,pô, já que a gente é essa força nova, vindo de um Estado que ainda não tinha uma expressão,quem sabe a gente não consegue fazer uma ponte assim, entre os dois grupos...e estabelecer uma terceira via, sei lá que nome dar pra isso.Mas é muito difícil essa negociação. Eu recebo críticas muito fortes,dos dois lados, eu ainda ouço coisas que me assustam bastante. Mas...
M.- Agora tem uma coisa que ta muito na minha cabeça..você fala de uma hierarquia não verticalizada, de uma hierarquia horizontalizada...mas ao mesmo tempo você é presidente da associação....como é que é isso}
N.- Não, essa horizontalidade ta no movimento nacional da luta antimanicomial, mas a associação, ela funciona só aqui em volta do NAPS de Florianópolis. Como ela tem esse objetivo de geração de renda, ela passa por essas instâncias verticalizadas, por ter um estatuto, ter um registro..
M.- O NAPS é uma organização municipal}
N.- O NAPS é,da Prefeitura municipal.
M.-E através dos militantes então, ta ligado à luta antimanicomial nacional....
N.- Não o NAPS né.
N.- O NAPS é uma parte da Secretaria Municipal de Saúde.
M.-Então você é muito envolvido com o NAPS e ao mesmo tempo ta envolvido com a luta antimanicomial...
N.-O NAPS é da Prefeitura, são funcionários públicos que trabalham lá e ponto. É isso.Agora o quê acontece , pra chegar nessa forma de trabalho que hoje chamam NAPS, houve todo um envolvimento da luta antimanicomial, na produção desse conhecimento no Brasil inteiro,entendeu}A idéia foi trazida como grande idéia...agora a prática é feita dentro de cada município , dentro de cada governo do estado, com essa estrutura.Quais} O NAPS, além de ser um grupo local de tratamento de pessoas com transtorno mental, e é esse que é o bonito entendeu, que eu acho, é que não é assim: não são os diabéticos que se reúnem pra lutar por insulina,não é só isso, a nossa proposta é muito maior do quê essa,a gente tem que mudar estruturalmente pra poder funcionar. Então assim,não vamos só lá tomar remedinho e pintar um quadro. Não. Lá surgiu a primeira associação dos usuários do NAPS, que num primeiro momento veio da nescessidade de comercializar os produtos que tavam sendo feitos nas oficinas lá dentro, mas que acabou tomando um vulto político muito maior, porquê a gente começou a perceber que pra tratar um portador de transtorno mental, não bastava dar só remédio, você tinha que dar cidadania pra ele, autonomia pra ele, fazer ele pensar-se capaz de interagir na sociedade. E essa doença, da falta de cidadania,não é só do louco, nem só do NAPS, é uma dificuldade do Brasil, do nosso jeito de viver. Então essa foi mais uma coisa legal, que eu acho que foi meu grande tratamento, minha grande maneira de fugir da loucura,foi essa, foi entender que eu tava num grupo maior, foi entender que eu tinha direitos e deveres, que minha voz tinha importância...que eu podia lutar por algumas idéias...e quando eu senti isso, e minha vida tomou esse rumo, eu parei de adoecer.
M.-Adoecer}
N.- É, parei de surtar.
M.-E aí nesse sentido, a loucura passa a ter um conceito completamente diferente, ela sai da biologia e da química, e vai pro campo ideológico...ou seja, o sistema capitalista enlouquece...
N.-Exatamente. E o socialista também! É que eu acho que a loucura ela transcende até isso assim.. é um estado de inquietação do humano assim...como é a sexualidade , como...dos fenômenos humanos.Eu não acredito que se possa tratar da loucura como se trata de uma doença exatamente por isso, porquê por mais que vc encontre remédio pra esquizofrenia, sempre vai ter um cara lá que vai estar com uma idéia que não é a idéia do grupo maior e que vai sofrer com isso. Que nome você vai dar pra isso, pra essa reação,entendeu}você pode inventar, como tem lá na relação de doenças mentais, 400 e poucos nomes, ninguém escapa daquilo...parece até coisa do “ O Alienista” , do Machado de Assis(risos),quer dizer...é isso, como é que você vai curar uma coisa que não é uma doença}
M.- Você ta questionando então o conceito de loucura.
N.- Exatamente. Pelo menos esse que a medicina coloca, pra mim, não funciona. Tanto que, não se consegue tratar de uma pessoa só dando remédio, ou dizendo pra ela deixar, como, os Hiper-tensos: “ah, você tem que mudar a sua alimentação..”
M.- Você ta me dizendo que você não é bipolar...
N.-Não, eu to dizendo que, a minha situação de vida, no Brasil, século XXI, Florianópolis...o quê essa inquietação gerou...chama bipolar, mas se eu tivesse nascido nas ilhas Malvinas, sei lá, Maori, sei lá , na Nova Zelândia em 1715,talvez eu fosse um..pagé da tribo, e ao invés de ser internado,ter um carimbo...eu teria outra relação de mundo interior.Existe a doença} Pra nós aqui, nessa história, existe,e tem tratamento pra isso que eles chamam de doença} existe... e eu faço o tratamento...mais ou menos(risos)
M.- Mais ou menos...
N.- É que pra isso..não sou só eu, tem toda uma família,um Estado, uma série de situações em volta que também me pressionam a me adaptar,e aí eu tenho que negociar com essa adaptação, e aí é que ta o segredo, você saber negociar com a sua inadaptação ou adaptação.Quando você consegue perceber isso, ta pronto.Entendeu} É um processo, mas que alivia muito a angústia....quando a gente consegue falar sobre o fim dos manicômios,tem várias reações, e uma delas é assim “ ah, mas o quê que a gente vai fazer com as pessoas violentas]”
M.- Esse ponto é interessante...com relação ao indivíduo...porquê o movimento tem uma visão diferente de coletivo, de sociedade, de sistema...um respeito maior à individualidade....
N.- mas uma individualidade que não desvincula do grupo, aí é que ta. Você pode ser indivíduo, mas você pode ser indivíduo quando e como você se insere num contexto.Entende} Você não é uma máquina isolada.A ciência tradicional e a medicina te colocam como um..entendeu,o seu cérebro ta doente.E a gente fala que não...eu só to refletindo uma doença que é muito maior do quê a minha...então eu só posso sair dela quando eu consigo perceber isso com clareza,mas aí tem a história da violência, o quê que a gente vai fazer com o esse pessoal que surta e fica violento, não sei quê} Ainda precisa internar, tem algumas situações em que ta colocando em risco a própria vida ou a dos outros,tem que internar, mas a gente acredita numa internação rápida em hospitais gerais, e além disso cara, eu acho que isso é muito legal,é...quando você aprende que você pode falar, que tem alguém que vai te ouvir...você para de quebrar as coisas, você para de bater nos outros...então...que que a gente faz com alguém que tá ali diante de uma situação de agressividade} Entope ele de remédio e joga ele num hospício, ou cria um espaço social pra ele se sentir vivo e não precisar mais bater nem gritar, nem precisar estar dentro daqueles círculos viciosos em que ele se colocou...a. família, a escola, o trabalho,eu digo não bicho, vamos construir uma escolha,não sabemos o quê é, mas pelo menos é um lugar onde nós sabemos que o cara vai poder dizer, Porra não gostei . Fala, tua voz. Tava dizendo isso pra um cara ontem, uma das coisas mais terapêuticas que eu tenho visto é quando você vai numa conferência e dá um microfone pro cara falar...ele fica bonzinho na hora....claro que num primeiro momento ele fica falando das mazelas pessoais, vai reclamar da vida, aquela choradeira, mas vai chegar um momento em que ele vai dizer, tá, e daí}Tá doendo} Ta, mas o quê que a gente vai fazer pra essa dor melhorar}E mais, quando ele entende que a saída pra dor dele nunca ta no individual, mas num coletivo...e aí PUF! Ta resolvida a história...Tá melhorada a história...o processo toma uma outra característica....eu tenho visto isso acontecer, eu não to falando isso como um ideal.
M.- Esse é o processo}
N.- É. Que é meu, e que eu tenho visto em outras pessoas e que é muito do caralho.Que passa pela possibilidade da gente ter um programa de rádio lá na nossa 102.9(Rádio Livre)...que é uma alegria pra gente poder estar lá... e outras iniciativas desse tipo que a gente encontra.Que no 18 de Maio a gente vá pra rua, que o jornal vem falar com a gente.
M.-Entendí.
....

M.- Qual a idade das pessoas da luta antimanicomial, uma curiosidade bem pragmática...
N.- Olha cara, eu tenho visto gente de 16 até 70.
M.- Você considera esse um movimento jovem, ou não, não tem nada haver, as características pessoais de aglutinação não tem nada haver com identidades pessoais.
N.- A identidade pessoal ta na experiência da internação...da doença...
M.- Da dor}
N.- É, e essa dor não tem uma idade específica né. O despertar para o movimento também vêm em épocas diferentes...às vezes a pessoa adoece muito tempo mas não tem idéia, ou logo no começo tem uma oportunidade, ou....vai também da tragetória de cada um...essa coisa da idade, do gênero...olha, eu tenho visto de tudo assim...claro...essa turma de 30, 40 anos, que ta mais animadôna assim, que já tem um pouco mais de vivência,acaba tendo uma possibilidade de, dentro do movimento, gerar ondas que costumam ir mais longe....a minha convivência lá dentro do Conselho Nacional de Saúde tem sido ótima por isso, porquê tem gente de 70 anos, 80 anos, que é ótima, guerreira, bate o pé e xinga e chuta, entendeu} Eu tenho ficado muito feliz por conviver com esse povo lá.Os aposentados guerreiros.
M.- E esse pessoal entrou na luta à pouco tempo}
N.- Bom, a luta em si é nova né, tem 14, 15 anos...mais né...desde 78...20 anos.
É tem uma turma que já ta...na faixa dos 50, 60 anos.Que entrou com 30 e foi caminhando junto...Tem outros que vêm e vão assim...que começam na luta e depois seguem outros caminhos, outros saem da luta e depois voltam...
Muita gente que eu encontrei na caminhada já ta se especializando em outros lances, no Programa de Saúde da Família, virou funcionário público...vai indo assim...teve um momento da luta, no final da abertura democrática, que o pessoal resolveu participar dos governos. Uma experiência complexa também.Porquê uma coisa é você ta do lado de cá do muro gritando, e outra é ta lá construindo...ali com Franco Montoro, 86, 90, os Governadores e tal..assim, eu sei disso de ouvir falar..eu ouço as histórias e leio e tal... mas não vivi nada disso não. Por sinal, uma coisa que eu tenho percebido assim ultimamente, dessa geração nova que ta surgindo dentro das lideranças da luta antimanicomial,é que assim... tem um povo que começou, que é um povo que passou pela experiência do manicômio e conseguiu sair,e que é um povo que hoje ta por aí,mas tem um povo que não, não não chegou a pegar essa realidade mais dura e já pegou a coisa no CAPSI,que é o meu caso, e de outras pessoas que eu conheço, que é um outro pensamento, que é um pensamento de luta, e que a gente sabe que tem muita coisa pra fazer, mas que a marca é outra né}Já não fica tão atrelado à um discurso de denúncia, é um discurso de proposta,menos denúncia e mais proposta. Falar mais do CAPSI, e menos do manicômio.
M.- CAPSI}
N._ CAPSI e NAPS é a mesma coisa, Centro de Atenção Psico-Social.
M.-AO mesmo que existe uma orientação, se vê uma crítica ao sistema, ao capitalismo, ao mundo como ele é, mas ao mesmo tempo, o campo de atuação não é exatamente esse...ou é.
N.- Acaba sendo pelas implicações das estruturas que estão colocadas. Até hoje eu não tive notícia de um usuário que tenha sido eleito pra algum cargo, pro exemplo..
M.- Nem psiquiatra}
N.- psiquiatra sim
M.- Da luta antimanicomial}
N.- É, no caso, o Paulo Delgado ele não é psiquiatra, ele é formado em sociologia até...mas o irmão psiquiatra, e o irmão dele é quem coordena a saúde mental no ministério da saúde.
Por acaso o nosso Ministro da Saúde é psiquiatra....
M.- Bom, isso não quer dizer muita coisa, o Lula era torneiro mecânico...
N.-É mas ele participou da luta, ele foi um cara que entrou com um projeto de lei da reforma psiquiátrica lá no estado dele, em Pernambuco..então tem uma relação já histórica com o pensamento da luta.Mas é como tu disseste, nos caminhos da vida as coisas podem tomar vários rumos...Inclusive porquê já existe a crítica da crítica... a gente também tem medo de quê o CAPSI se transforme num mini-manicômio..
N.- Mini manicômio}
M.- Claro, o pensamento por trás...uma das coisas mais terríveis do manicômio, é o quê a gente chama de cronificação, que é o figura se conformar e gostar de ficar lá.Como o preso que não quer mais sair.Porquê essas experiências, de organizações totalizantes, como se vive lá,como na prisão, como no manicômio, elas...elas tem esse carater dúbio,que, ao mesmo tempo que ela é terrível, ela te protege de uma outra coisa que ta lá fora...então tem gente que tem dificuldade de abandonar.E a gente acha que no CAPSI hoje, conforme o jeito que a coisa for sendo conduzida,claro que isso é bem mais suave que a relação do manicômio, de quê as pessoas também se cronifiquem no CAPSI,que o CAPSI não é um lugar pra passar o resto da vida, é um lugar pra te reforçar como pessoa, e achar um caminho, inventar um caminho. Se ele gerar, esse indivíduo, essa pessoa que se vicia, que se cronifica naquele tipo de vida ali, porquê você recebe alimentação, tem as oficinas, tem pessoa lá pra te ouvir...então, quem trabalha lá tem que tomar cuidado, pra não ficar muito maternal,de não ficar muito útero, de não ficar muito protetor,tem que ficar inquietado, tem que gerar essa angústia na pessoa e dizer: e agora, e o próximo passo]Aonde é que eu vou} Que que eu quero}De novo: Não só pela nossa forma de tratar, mas por quê a gente vive num país em que as pessoas estão acostumadas com esse padrão em que o Estado vá fornecer, que o passarinho com a boca aberta vai receber comidinha da mamãe.
M.- O Estado paternalista.
N.- Paternalista, que é onde a gente vive. E o manicômio é um reflexo disso também. Mas como que se quebra de novo essa relação}Aonde é que ta o caminho pra dizer, não, não é por aí, a gente quer mais, a gente quer outra coisa.Na prática não é fácil não.
M.- Pois é, é muito difícil, é uma proposta muito difícil de se ver, a gente só pode ver o resultado nos próprios indivíduos...não há um resultado social ainda disso...
N.- E não dá pra estabelecer fórmula né} Dizer: AH! Você tem direito a se tratar durante um ano e depois, você se vira.Cada um tem seu caminho.Quando o Lula propôs essa lei “ de volta pra casa”, desse dinheiro, de 240,00 reais pras pessoas que tão saindo do hospício, eu achei legal assim isso, que eles estabeleceram que vai ter uma comissão municipal de avaliação desse dinheiro,aonde vai ter que ta o controle social, né, o conselho de saúde,a pessoa tem que estar vinculada à um CAPSI... o dinheiro vem por um ano, depois desse um ano é feita uma reavaliação, ou seja, não é uma aposentadoria, apesar de eu achar, no fundo, que tem um sabor de...” a gente fez tanta sacanagem com essa gente, vamos, devolver um pouco de oportunidades pra eles dessa forma..” entendeu} Como alguém que tivesse sido preso sem motivo, que passou anos na cadeia se ter cometido um crime. Então o Estado também paga pelo seu erro...só que eu acho que isso também não pode ser feito dessa forma tão só indenizatória, tem que ser uma indenização que propicia uma abertura maior...então, passa um ano, o cara recebe aquele dinheiro, avalia..Continua precisando} Se ele voltar pro hospício já não recebe mais...que senão você vai gerar famílias que vão querer ter loucos,que a gente vive numa condição de miséria terrível...é..”vamos criar um louquinho...”,essas pessoas, pra receberem esse dinheiro, têm que ter estado à pelo menos dois anos internadas ininterruptamente, o corte é esse.Então ele ta amarradinho desse jeito, praí de novo, não cronificar né...esse dinheiro é uma força pra você criar o seu espaço...crie, vá atrás...se funcionar desse jeito, que eu espero que funcione, ótimo... senão,as eleições tão aí.
M.-As eleições} Você vai se candidatar}
N.- (risos) Eu já pensei nisso, eu já pensei..
M.- À quê} A vereador}
N.-Veradoido
Risos
N.-Mas eu não sei se eu vou agüentar o peso de um negócio desses...dizem que o poder enlouquece...e o poder absoluto enlouquece absolutamente.....então eu acho que já enlouqueci o suficiente por essa vida...
M.- E dentro do movimento, existem várias propostas de cura da saúde mental, ou a luta antimanicomial é uma coisa rígida, ou única...}
N.- Não, não,
M.- Não fique muito preso às minhas palavras, eu sei que rígida é uma palavra à qual você diria não de qualquer jeito...mas...
N.- Ok....mas deixa eu te falar...desde o começo, porquê, como ela tem uma diretriz clara, tem uma espinha,dois momentos...as primeiras experiências foram feitas em dois lugares diferentes no Brasil...eu to falando de 88,87,em São Paulo e em Santos....................Então assim..em Campinas foi criado apenas um CAPSI, em volta desse hospital, e as pessoas foram sendo tratadas dessa maneira...em São Paulo, que é uma cidade maior,eles criaram já uma rede, de saída,tinha o CAPSI, tinha uma pensão protegida, tinha um centro de convivência,tinha não sei quê, não sei quê não sei quê.....então são duas formas assim,você joga o CAPSI na comunidade e espera que à partir dele as outras iniciativas vão surgindo e vai se montando a estrutura, ou você joga a estrutura pronta e deixa o povo chegar.E além disso, como eu te falei,que as iniciativas a gente tem uma busca de territorialidade, de levar o tratamento até a pessoa, e não a pessoa até o tratamento né,cada lugar do Brasil foi criando do seu jeito, com nomes diferentes inclusive...por isso CAPSI, NAPS, CESAN...tem vários nomes pra mesma idéia por aí...existem inclusive situações de conflito dentro do movimento mesmo..” ah, a gente quer uma CAPSização da saúde mental” é essa forma que a gente quer} E as outras iniciativas onde é que tão} Onde é que ta a cultura, onde é que tá a arte, onde é que ta a iniciação política, entendeu} Essa ...esse aparente desequilíbrio, essa dialética interior ela é muito bem vinda, mesmo que às vezes gere alguma dor, algumas rachas, como eu contei antes né...mas existem...existem, dentro da mesma idéia, várias formas de fazer diferente, que tão sendo postas em prática inclusive,em cada região em cada centro.
Tem coisas por exemplo que eu sou contra sim....eu sou contra eletro-choque,ponto. Eu não negocio isso.E tem muita gente dentro do movimento que pensa isso.Eu sou contra o hospício humanizado, que é aquela coisa de pintar as paredes, melhorar a cômoda e continuar sempre com a mesma lógica.Hospitalocêntrica e excluidora, exclusiva das pessoas...e tem gente que fora do movimento prega isso, de dentro dessa estrutura da reforma psiquiátrica é possível compreender um hospital psiquiátrico melhorado, humanizado. Eu acho que não, que não dá pra polir uma maçã podre,o hospital não serve, pronto, ponto final, tira isso,acabou, não queremos mais isso, vamos fazer uma outra coisa, transformar o hospital num...centro de difusão cultural do bairro, da cidade,que em torno dos hospitais...como eles eram isolados das cidades maiores, criou-se toda uma comunidade, de pessoas que viviam, trabalhavam..gerações que tão em volta disso, e também não se pode desprezar esse impacto.E a gente diz assim: vamos fazer o quê com essa gente} Mandar embora, jogar fora}Não. Claro, trabalhar de novo, criar novas oportunidades. Os profissionais de saúde que tão trabalhando nos hospitais também têm esse pavor; Ah, e agora, vou fazer o quê da minha vida}São bem vindos , mas são bem vindos com essa possibilidade, de mudar o seu pensamento,de melhorar o seu pensamento, e isso é difícil,essa é uma realidade que já acontece, ter que conviver com usuários e com profissionais de saúde que vieram da estrutura anterior,não é simplesmente chegar e fazer uma lavagem cerebral no cara. Não.Nesse caldo a gente tem que ir cozendo com calma, pra não torrar tudo.É uma cultura, é uma forma de pensar o manicômio,não é só um lugar, e pra lidar com isso, você precisa de processos muito mais sutis, muito mais autênticos...não é só botar a placa: fechado e tocar a vida.na verdade a gente tem consciência de que tudo que gente tem lutado, não vai ser pra mim. Já é. Já é um pouco...mas o ideal, a grande mudança,eu não acredito que eu vá ver, talvez as outras gerações....A minha crença é mais bizarra ainda, eu acho que essa experiência não vai ser só pra saúde mental, ela vai servir pra várias exclusões que tão aí.O louco já ta num limite tão grande de perda de identidade, que ele não tem muito assim, medo,o vínculo dele já não é...eu sempre digo assim: Eu só consigo ser o melhor de mim quando eu não tenho nada a perder.Quando eu tô na luta, quando eu fico na dúvida: o quê que eu faço} Diante das situações...As melhores situações são sempre aquelas em que eu abstraí, abstraí papai e mamãe,filho, namoradas, carrões,sei lá o quê. Aí nessa hora,quando eu atingi isso aí, aí a luz vem e a coisa vai....isso é meio geral.É possível que um dia, não só loucos né, mas gordos capengas, cegos, gays,todos possam estar, pelo menos com um nível de tolerância muito maior do quê todos estão hoje em dia. Uma vez, eu vi uma reportagem, eles conseguem fazer uma cirurgia no cérebro que algumas pessoas passam a ouvir, quem nasce surdo,e aí havia toda uma discussão entre a comunidade dos surdos, porquê eles têm uma cultura própria, eles têm um jeito de ser deles, uma língua deles, um mundo deles, e essa gente não queria mais, não desejaria que esse mundo desaparecesse,que essa riqueza se perdesse pelo meio do caminho, simplesmente porquê alguém lá descobriu uma coisa que faz uma cirurgia...então talvez essa questão também seja colocada pra nós um dia...que quê a gente faz com esse patrimônio da loucura, seja ele horroroso ou não}Talvez a gente não precise abdicar, de ser diferente, de ouvir vozes...eu tenho muito medo aí dessa tal de adaptação, de inclusão...
M.-Então é um movimento que ta à favor da diferença...
N.- Á favor da tolerância...da diferença não, porquê a gente não quer que as pessoas sejam diferentes...a gente não quer estimular a loucura dos outros, a gente quer que as pessoas que passam por isso, que nem resolve, porquê isso não é uma coisa que se resolva, mas que elas possa ter algum espaço pra se manifestar,pra fazer suas escolhas, ter sua autonomia.Daí a nossa identidade com os outros movimentos também...
M.- Que outros movimentos}
N.- Que ta começando à ter agora. Pessoalmente eu tenho uma admiração muito grande pelo MST, do movimento sem terra, pela organização deles e tal, e pelo DST-AIDS, que é uma estrutura muito interessante, não governamental, e que é muito eficiente pra resolver os problemas deles.Então eu tenho procurado me aproximar desses grupos, e também dos direitos Humanos, que a gente tem uma identidade muito grande, pela tortura que é feita nos manicômios e tudo né...
M.- A luta antimanicomial tá dentro da luta pelos Direitos Humanos}
N.- É como eu expliquei, assim,acho que são iniciativas individuais, que tem pessoas dentro do movimento que têm procurado esse discurso em comum. Como o pessoal dos portadores de nescessidades especiais, alguns já tão estabelecendo algumas conversas, “ vai por aqui, vai por ali”...a interconexão entre os movimentos é muito importante.Inclusive eu acho que, assim,o Movimento de Luta Antimanicomial ele é meio inspirado no MST...(risos).E até , na época em que eles usavam assim: “ Por uma sociedade sem latifúndios”, tinha umas frases assim,” Tortura nunca mais”, que é dos Direitos Humanos, então a gente usa:” Manicômio nunca mais”,” Por uma sociedade sem manicômios”, acho que essa proximidade de discurso revela uma forma de pensar semelhante.
M.- Mas em outros lugares....
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M. Pelo que você ta me dizendo, você ta me dando a impressão de quê os indivíduos que tão inseridos na luta antimanicomial têm uma identidade total com o movimento.....e a gente discute muito nas Ciências Sociais, por exemplo, vamos pegar o movimento feminista...dentro dele tem vários outros movimentos, o de mulheres negras, o de mulheres lésbicas...todas feministas. E na luta antimanicomial, têm essa diferença}
N.- Tem. É justamente como eu te falei,tem os técnicos, os profissionais de saúde, os usuários, do outro lado, com outros desejos, e os familiares ainda, com outra visão ainda, que eventualmente batem de frente, se encrencam, voltam...pelo menos esses três eu tenho consciência assim...e a gente pode pensar ainda: os que estão no governo e os que não tão, seria mais sutil,não chega a ser uma coisa....por quê esses que eu te falei são mesmo estruturados. Já teve um encontro só de usuários e familiares...
M.- Sem os psiquiatras....
N.- É, sem os técnicos...psiquiátra, psicólogo, assistente social, arte terapeuta, tem vários profissionais, tem muito profissional.......além desses, eu acho que...e aí também lá em Brasília, nessa comissão intersetorial de saúde mental, tem uma vaga só pros familiares, uma vaga só pros usuários, e uma vaga chamada do movimento,que é a que eu to, que até a minha chegada,era ocupada só por técnicos.Foi uma barreira que a gente quebrou...
M.- É uma coisa recente...
N.- É, foi o quê eu te falei,houve toda uma confusão, racha,” bababa” , eu fui lá, votaram em mim e eu to lá. Nesse sentido eu to sendo muito cobrado, mas existe assim um olhar,”pô, quem é esse cara, qualé a dele}”.Que a minha ascensão dentro do movimento foi muito rápida,foi meio meteórica...exatamente por eu ser atípico né...a gente tava discutindo antes.....porquê eu tive oportunidade de estudar, fiz universidade, eu tenho o apoio da família,pra ta dentro do movimento...meu comprometimento com relação à doença também não chegou assim, à me estragar de vez, não impediu que eu fosse tomando consciência e ir fazendo coisas com o ritmo que eu faço. E essas três coisas também se juntaram em mim...Infelizmente hoje em dia ainda tem uma visão com relação ao SUS(Sistema Único de Saúde)e à saúde mental mais ainda, que a gente ta muito habituado à pensar de que o SUS é pra pobre, então a classe média tem muita dificuldade de se inserir dentro dessa estrutura, e a saúde mental é tão estranha, que até nisso ela é diferente,não existe opção....
M.- Tem hospício particular}
N.- Hospício particular tem um monte, o quê não existe é tratamento alternativo fora manicômio, não tem CAPSI que não seja do governo. Então a classe média ta tendo que ir lá conviver com os desdentados, banguelas, tortos...tem rico, tem pobre, feio,tem bonito... e esse convívio lá dentro é muito conflituado, não é simples.Não tem esse tipo de ilusão. Então, eu já ouvi comentários assim,que o dia que a gente vai no teatro lá no CAPSi, na quarta-feira, é o dia que é o grupo mais aberto lá do CAPSI, vai gente de todo lado,então o pessoal que vai lá, os mais pobres, eu já ouvi comentários lá...”ah, esse grupo é o grupo dos riquinhos,olha só como tem carro bacana no estacionamento”....como se lá fosse um lugar só pra pobre,e isso a gente tem que quebrar entendeu} Eu acho que o SUS tem que ser um lugar pra todo mundo, ou então pra ninguém....tem que ter qualidade no quê é feito.Se a gente ta fazendo uma proposta de tratamento, como eu te falei, dever do Estado, Direito do Cidadão, a saúde,é pra todo cidadão que paga imposto. E isso ta acontecendo lá...e é um (bate na mão)_...todos comem a mesma comida, participam da mesma oficina,vão no mesmo médico, participam da mesma oficina,olham, vivem um do lado do outro, um cheiroso, um fedido,um pegando ônibus, outro com carro...e tão lá.Isso é muito bom. Se a gente conseguir de novo, passar essa experiência pras outras áreas da saúde, que riqueza né}Que massa né}Tem gente que desiste né} Tem gente que continua defendendo manicômio né....
M.- Tem gente que prefere o manicômio}
N.- Entre conviver lá com o pessoal e continuar...
M.- Existe um contra movimento, ou um não movimento}
N.- Sim!Tem familiares e outros, que defendem o manicômio.Tem associações, tem a AFDM, que é a Associação de Familiares de Doentes Mentais, que é à favor do eletro-choque, tem a ABRATRA, que é a Associação Brasileira de Transtornos Afetivos, que também defende.. tem o Projeto Fênix,que é uma Ong, de usuários e familiares que defende o eletro-choque...
M.- E como é a relação desse pessoal}
N.- porrada. Eu não agüento...Não consigo estar do lado.Não consigo entender essa gente.Não dá, mas faço um esforço. Entendo porquê sei, que por trás dessas associações,estão as grandes industrias farmacêuticas multinacionais que têm muito dinheiro,e os próprios donos de hospitais que também são milionários,então eles tão lá por grana, grana e estrutura. Eles dizem que não,sabe, o discurso deles é, não, porquê a ciência, o eletro-choque é indicado, porquê o manicômio é importante,é a direita,vamos dizer assim, dentro do cenário político da saúde mental do Brasil.E eles são relativamente bem sucedidos e organizados.São...grandes inimigos.
M.- Grandes inimigos}
N.-Lindos, fortes e corados.
M.- E tem alguma característica entre esses em comum} Faixa etária,alguma coisa}
N.- É o quê eu te falei, a classe média...que esse povo não consegue se encaixar dentro da estrutura aberta...nova, e acaba girando aí naquele mundinho...E tem aqueles que vêm se um status social mais pobre mas que tão pensando na possibilidade de ganhar dinheiro.
M.- E a gente volta a discutir o Estado capitalista...
N.- É, tem uma galera que tá se esforçando pra permanecer o status quo como tá.É o quê eu te falei, os tais dos hospitais modernizados, a máquina de eletro-choques agora tem mais botõezinhos...tem que fazer ...os exames são feitos com toda uma preparação...tem anestesista,tem exames cardíacos...o hospital da USP lá, tem uma estrutura interessante...mas vai pra Terezina...ver como eles levam eletro-choque lá...vai pro Macapá,ver se tem hospital psiquiátrico lá, acho que no Amazonas tem um ou dois...um infernão.Então eu acho.. eu não consigo...é muito duro. Quando teve a conferência...o Congresso Nacional de Psiquiatria,ano passado aqui,e aí tava lá o ...as barraquinhas desse povo, das associações pró-manicômios..e numa delas tava pendurada lá no fundo a lei 10.216, a nossa lei, da reforma psiquiátrica,a nossa grande luta antimanicomial tava lá, pendurada, e durante o congresso inteiro eu consegui me conter, a minha sensação era, de por a cabeça na boca do leão,fica o tempo todo concentrado pro leão não fechar a boca... você fica o tempo todo concentrado pra não cair nesse jogo, que é...por a boca na cabeça do leão, ter um monte de gente lá esperando que eu fosse me manifestar pra me levar pro hospício, e me dar eletro-choque.Então quando eu vi aquela lei lá pendurada eu tentei me conter, mas não teve jeito, bati boca lá com a mulher...disse que eles não entendiam nada do quê tava lá...aquelas coisas. A democracia só é boa quando beneficia só eles, basta vir uma outra pessoa e pronto, não é nada disso.Eu fiquei bem ruim assim, baixou a adrenalina em mim e eu fiquei bem ruim...Mas não é desse jeito que se muda as coisas, a luta é bem maior que essa...A parte podre, o enfrentamento direto, é ruim. Eu tive a oportunidade de fazer...........