terça-feira, abril 06, 2004

Florianópolis, 5 de junho de 2002-06-05
Carta aos Usuários

Cada vez que não conseguirmos mais nos ouvir uns aos outros, e cairmos num desespero surdo, que só consegue machucar e humilhar os outros, aí está o manicômio.
Cada vez que acharmos que estamos sozinhos, e desistirmos da luta maior, aí está o manicômio.
Cada vez que sentirmos vergonha, por nós e pelos outros, de sermos usuários, assim como desânimo para freqüentar o serviço, ou medo de estarmos piorando nossa condição de saúde quando estamos lá, aí está o manicômio.
Cada vez que esquecermos quem somos, que nossa força só acontece quando estivermos conscientes de nossas possibilidades e limites, e que somente poderemos sair desse lugar que nos colocaram quando unidos, aí está o manicômio.
Cada vez que ficarmos embriagados com o poder, manipulando nossos companheiros para conseguirmos vantagens pessoais e, alimentando vaidades fúteis, perdermos de vista o verdadeiro objetivo, na Associação e onde quer que estejamos representando os usuários, aí está o manicômio.
Cada vez que erguermos a voz, querendo pedir socorro e só saírem misérias e ofensas, aí está o manicômio.
O Manicômio não é só um lugar, mas um inferno que põe muros enormes entre cada um nós.
Os nossos verdadeiros inimigos, aqueles que pretendem nos manter presos a esse lugar de “loucos de todos os gêneros”, seja entre os muros dos hospícios e clínicas, seja por nos convencerem que não temos valor, que não sabemos lutar, nem ter nossas próprias idéias, nosso autogoverno, que sempre dizem que nossa luta é apenas “parte da dinâmica” da nossa doença, devem estar dando risada da nossa cegueira.
Por um segundo vamos abandonar um pouco a raiva e o medo e perceber que já temos conquistas. Que ainda há muitas batalhas pela frente, mas a maior delas, a construção de uma identidade, é o primeiro passo para um destino maior.

“Sou louco sim, doutor, mas tenho meus direitos. Se o Senhor não me deixar ser cidadão, tenho em minhas mãos leis que me garantem esse direito. E o Paulo Delgado que me abençoe, eu vou fundo. Hoje o Senhor me olha aqui, tremendo, um pouco nervoso, mas não tem idéia o que eu já vivi. Do quanto eu já fui humilhado por ser diferente. Por não agüentar as regras sociais, por não aceitar uma família que me trata como um peso morto, por viver num lugar em que a gente só tem valor se ganhar muito dinheiro. O Senhor pode me receitar um remédio, pode me tirar o direito de fazer o que eu quiser com o meu dinheiro, minhas coisas, pode até me internar num desses hospícios medonhos que o Senhor diz que vai reformar para ficar mais humano. Mas hoje eu sei o nome da minha doença, sei o que esses remédios fazem comigo. Por isso exijo que ser tratado como um cliente, não somente um paciente. Hoje eu sei que tem um usuário como eu que está fiscalizando essas internações e os que viveram o que eu estou vivendo não vão me deixar na mão. Sei também da luta deles em todos os encontros e comissões que tratam de saúde mental em todo esse Brasil. Queria lhe dizer doutor, que eu faço parte de um movimento chamado luta antimanicomial. É isso mesmo Doutor, é um pessoal da pesada. Cada passo que eu dou em direção da minha cidadania, mais eu me afasto do surto. E não vou mais aceitar mais nenhum tipo de tratamento abusivo ou desumano. Hoje o seu poder tem limites Doutor. Hoje eu sei quem eu sou. ”




Nilo Marques de Medeiros Neto
Presidente da Associação dos Usuários do NAPS – Ponta do Coral

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