Florianópolis, 27 de Setembro de 2002
Caros Senhores
Será um sinal de amadurecimento, para todos os atores envolvidos na reforma psiquiátrica, se, e quando, um usuário do serviço de saúde mental for aceito pela academia, para discutir a atenção psicossocial. Como dizem os usuários norte-americanos no livro do Richard Weingarten, O movimento dos usuários em saúde mental nos Estados Unidos: “Nada sobre nós, sem nós”. Isso, considerando também aquele critério de avaliação do grau de recuperação do usuário, que avalia medindo da seguinte forma: quanto mais o usuário interferir na gestão do serviço a que estiver ligado, melhor estará sua saúde mental.
Trazemos subsídios do recém lançado Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental, publicado pelo Ministério da Saúde, onde no capítulo que fala de recursos humanos, temos:
“Nesta mesma direção, a política de recursos humanos deve estimular a dissolução do ‘manicômio mental’, implícito no saber científico convencional, que discrimina o saber popular, por meio da maior valorização da experiência de familiares e usuários, garantindo desta forma a integração e o diálogo com saberes populares”.
E ainda indica, no mesmo tema:
264. Envolver e capacitar a sociedade civil que desenvolve ações em saúde mental (...)
Durante esta especialização pretendemos aprofundar a discussão do papel das associações de usuários e familiares, além das cooperativas de trabalho, no contexto do serviço de saúde mental, procurando perceber seu papel não apenas como geradoras de renda, mas na construção do controle social, pilar fundamental do SUS.
Pessoalmente, também buscaremos subsídios acadêmicos para incrementar e validar um discurso que, hoje, ainda está baseado nos percalços da realidade cotidiana, para que possa alcançar outros espaços de discussão e disseminar em nosso Estado as imensas possibilidades dessas esferas de atuação, propostas e exercidas via sociedade civil organizada.
Sempre que surge uma possibilidade de transportar uma experiência de transformação tão intensa de vida, como a que tenho experimentado nos últimos anos, para um espaço de reflexão e pesquisa, como o proposto pelo curso, entrelaçando minha experiência pessoal à formidável transformação que está sendo realizada pela reforma psiquiátrica, sou forçado a observar de uma perspectiva um pouco mais afastada e necessariamente passar a percebendo que:
· Passei da condição passiva de portador de um transtorno mental, massacrado pelo estigma de uma suposta incapacidade de fazer minhas escolhas pela vida, como: trabalhar, ganhar dinheiro, ter uma companheira, viajar, fazer amigos;
· Para a condição de líder dos usuários na luta pela cidadania, frente à Associação dos Usuários do NAPS, militando no movimento nacional da luta antimanicomial, representando este na Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde, como Conselheiro Municipal de Saúde de Florianópolis, dando palestras em cursos de Psicologia, Enfermagem e ainda participando dos vários encontros, jornadas, conferências, fóruns, pelo Brasil afora, onde inclusive atuamos em mesas de discussão de qualidade dos serviços.
Ora, minha história acaba sendo a mesma de muitos outros companheiros usuários que estão de mangas arregaçadas, nas: cooperativas, associações, oficinas e serviços, buscando pensar sua experiência já de uma maneira mais coletiva, compreendendo a força de mudança que estamos sustentando, contando com o apoio valoroso e idealista de profissionais de saúde, gestores, universidades e comunidade como um todo.
Entretanto em Santa Catarina tudo isto é muito novo. Enfrentamos ainda sérias dificuldades relacionadas a nossa inexperiência com a atenção ao portador de transtorno mental. Nosso olhar, na condição de usuário, ainda permanece, muitas vezes, autocomplacente. Nossas famílias e mesmo a sociedade, continuam nos pretendendo inúteis, incapazes ou meras vítimas irrecuperáveis de um mal sem cura. Esse é o verdadeiro desafio que temos de aceitar, ao atravessarmos as portas dos serviços. Desejamos permanecer nesse lugar, muitas vezes cômodo, porque conhecido, ou aceitaremos o desafio de construir uma nova imagem, essa sim, cheia de incertezas, sucessos, decepções, dores e encontros, mas que representa uma oportunidade real de vida nova, uma imagem de luta e superação, visando uma reforma psiquiátrica eficiente e para todos?
No meu caso, lentamente venho descobrindo que meu objetivo de vida está sendo cada vez mais, o de descobrir junto com outros companheiros usuários, que ele também deve lutar para descobrir o seu, seja ele qual for. Retomando o poder de escolher o meu caminho, através dos ideais e práticas da reforma psiquiátrica, pretendo fazer parte dessa caminhada na vida de outras pessoas.
Compreendo hoje, que parte importante desta elaboração reside no trabalho remunerado. E não naquele que vê o trabalho do louco apenas como uma forma de ocupá-lo, retirando-o do ócio, para que esteja afastado da sua loucura, como queria Pinel em seu tratamento moral. Também estaremos fugindo da visão de Herman Simon, na década de 20, que pretendia mesmo curar a loucura pelo trabalho, na praxisterapia, laborterapia ou ergoterapia.. Este tipo de trabalho, sendo realizado dentro do manicômio e sem remuneração significativa, acaba afastando qualquer possibilidade de construção de uma subjetividade, e acaba desempenhado uma função cronificante e cada vez mais dependente, além de representar, em muitos casos, mão de obra escrava.
O que buscaremos refletir em nossa pesquisa, é um tipo de empresa social, que nos dizeres de Rosemeire Silva, em seu trabalho: Cooperativas, possibilidade real de uma nova construção, assim define:
As cooperativas são possibilidades mais efetivas de enfrentamento da questão do trabalho para os excluídos, como o são os portadores de sofrimento mental, por serem empreendimentos coletivos, onde além da produção de bens toma-se mais fácil a circulação da vida dos envolvidos; por instituírem uma forma de produção, onde o ganho é proporcional ao trabalho feito e, ainda, por ser onde poderemos construir estruturas capazes de comportar a diferença, rejeitando a estigmatização ou o estabelecimentos de guetos.
Não poderia surgir em momento mais estratégico esse curso de especialização, quando da ampliação do número de serviços de saúde mental em Santa Catarina. Inclusive porque também nesse momento, percebemos um amadurecimento dos atores envolvidos. Também das relações possíveis entre estes serviços de saúde mental e as possibilidades de crescimento pessoal e dos grupos, que acreditam na força das Associações de Usuários e Cooperativas de Trabalho, como forma eficaz de inclusão e recuperação de cidadania dos portadores de transtorno mental.
Quanto ao papel das Associações e Cooperativas no desempenho do controle social, parece-nos claro que este é um poderoso instrumento para conseguirmos construir uma política de saúde mental sólida em nossos municípios. Através da presença das associações de usuários e familiares nos Conselhos Municipal, Estadual e Nacional de Saúde: buscando espaço, via criação de comissão de saúde mental em cada uma destas instâncias, pressionando os políticos para que elaborem, projetem, orcem e executem obras, para que se articule a rede substitutiva de saúde mental. Contribuindo para a discussão, Eduardo Mourão de Vasconcelos, no trabalho O Controle Social na Reorientação do Modelo Assistencial em Saúde Mental no Brasil Atual, parte do Caderno de Textos distribuído para contribuir nas discussões da III Conferência Nacional de Saúde Mental, Brasília, 2001:
Entretanto, este espaço político de luta nem sempre é ‘dado de graça’, mas conquistado pelas forças e organizações democrático-populares. No Brasil, em muitos municípios e mesmo estados onde a tradição de participação da sociedade civil é fraca, os conselhos são inexistentes na prática, ou muitas vezes apenas formais e manipulados pelas forças políticas dominantes. Em outras palavras, sua efetivação real constitui um processo de luta e conquista, através de uma aliança entre gestores comprometidos, organizações profissionais, organizações populares e de usuários/familiares, sindicatos, etc...
Dito isto, resta-nos agradecer, em nome dos usuários, a iniciativa daqueles que trouxeram esta especialização para Santa Catarina. Certamente ela representará um crescimento e criará mais um importante espaço pra troca de experiências, visando sempre a democratização e a busca cidadania, para todos os envolvidos nesta luta por dias melhores na saúde mental. A todos nós, fé no processo.
Nilo Marques de Medeiros Neto
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