quarta-feira, abril 28, 2004

Texto proferido durante a Conferência Estadual de Saúde Mental – Florianópolis/SC 2001.

Agradeço a oportunidade de estar aqui entre vocês. Quem me conhece há mais tempo sabe que a trajetória entre o dia do meu diagnóstico como portador do transtorno afetivo bipolar e hoje, fazendo essa fala, é cheia de percalços, dores, alegrias e principalmente muito aprendizado. Obrigado pai e mãe, pelo apoio incondicional e paciência nas horas mais duras.
De todas as maneiras possíveis para começar essa pequena conversa, talvez a menos simpática seja a de, já nas primeiras palavras, desabridamente, escancaradamente, desavergonhadamente dizer: ninguém é louco e ao mesmo tempo, todos somos.
Esse tipo de afirmação pode suscitar inúmeras novas idéias ou contraposições, mas vou procurar me deter em apenas duas ou três.
A primeira que me ocorre, é o tema proposto por esta conferência: cuidar sim, excluir não. Se partirmos do pressuposto que qualquer pessoa sob determinadas circunstâncias pode vir a enlouquecer, começamos a entender melhor a situação. E porque então algumas pessoas são diagnosticadas e outras não? Deve-se ao fato de que foi estabelecido por nossa cultura e nossa época, que certos comportamentos são socialmente inaceitáveis e o doente mental não seria capaz dessa convivência, estando em surto. Alguns dizem que a internação só acontece se a pessoa estiver pondo em risco a sua vida ou a de outros. Conheço vários motoristas que já deveriam estar internados há muito tempo. E certos políticos então, que com suas roubalheiras colocam em risco a vida de populações inteiras. Mas não vim fazer denúncia.
Queria dizer que quando todos compreenderem que também estão sujeitos a algum tipo de loucura, fica mais fácil deixar de excluir, de menosprezar, de maltratar... Uma das facetas mais doloridas da trajetória do portador de doença mental é perceber que o que ele diz ninguém mais ouve. É como no ditado: “deixa, deixa ele falar, o médico disse pra não contrariar”.
E quando se fala em cuidar, isso me soa meio paternal demais. Cuidar deve significar: dar emprego, dignidade, ouvir, estabelecer relações verdadeiramente afetuosas, participar dos movimentos sociais que privilegiem a melhora na vida dos usuários, como o movimento da luta antimanicomial ou o projeto fênix. Cuidar não significa entupir de remédios e ter vergonha dos vizinhos porque o filho é esquizofrênico e fala de um jeito diferente.
Outra interpretação muitíssimo relevante dessa frase: ninguém é louco e ao mesmo tempo, todos somos, significa romper a hierarquia estabelecida dentro de muitos consultórios psiquiátricos, psicológicos, nas oficinas dos NAPS e CAPS, para que de uma vez por todas possamos perceber que a possibilidade de real melhora na vida de todos os envolvidos, inclusive médicos, psicólogos, terapeuta, etc, está no estabelecimento de laços entre iguais, onde cada um participa dessa construção trazendo aquilo que tem de melhor, seja um conhecimento teórico obtido nas universidades e através de outros estudos, seja com a prática diária da convivência com o portador de um transtorno mental. Só com este entendimento poderemos realmente ultrapassar a exclusão e criar um ambiente propício para a recuperação ampla do portador de sofrimento psíquico.
Finalmente, a frase: ninguém é louco e ao mesmo tempo, todos somos, significa o fim dos hospitais psiquiátricos, esses antros de horrores morais, sociais e psicológicos. Só com a queda daqueles muros poderemos dormir tranqüilos e saber que mais nenhum ser humano será vítima de eletro-choque e outras torturas, para proporcionar o enriquecimento de meia dúzia de médicos safados, que não se cansam de vampirizar a vida de almas, já por si só, sofredoras.
Gostaria de encerrar minha participação, citando um texto de Clarice Lispector que traduz toda a possibilidade de um diferente.
Cito:

UM PATO FEIO

Mas foi no céu que se explicou seu braço desajeitado: era asa. E o olho um pouco estúpido, aquele olhar estúpido dava certo nas larguras. Andava mal, mas voava. Voava tão bem que até arriscava a vida, o que era um luxo. Andava ridículo, cuidadoso. No chão ele era um paciente.

Nilo M. de Medeiros Neto

Nenhum comentário: