terça-feira, abril 06, 2004

Com essa mesma estranheza, de encontrar alguém pelo mundo, com um olho ou uma perna, num lugar onde não poderia estar, vivo eu.
E por mal se notar essa minha maneira peculiar de experimentar, a muitos parece surpresa que eu reaja com tanta força, ao que me parece impossível de sentir e silenciar.
Mesmo assim, quando uns poucos, que devem ter lá suas reações desacertadas da maioria, como eu, se por acaso entre um susto e outro, pudermos nos reconhecer... Ah, quanta vontade de rir que me dá. E como fico feliz e tranqüilo.
Tomo um sal mineral pra me adaptar. Converso muito com vários conselheiros especiais, que tem a mesma função de me fazer mais próximo do senso comum. Pinto, danço, interpreto e canto, querendo expressar esse mundo tão exótico em que vivo.
Como são estranhos esses humanos, tenho vontade de gritar.
Então me dizem:
- Mas você também é humano.
E aí tudo fica ainda mais inexplicável


Quando tomei coragem para assumir a viagem de mergulhar neste universo dos chamados “loucos”, ainda mais assumindo o papel de um deles, confesso que em parte foi por uma certa curiosidade. Queria saber mais, conviver com outras formas de perceber a realidade, que pudessem me arrastar para longe da vida, por demais tediosa e previsível, que acabei construindo para mim.
Como qualquer caminho, muitas foram as mudanças de rumo e aprendizados. Descobrir as estruturas por detrás das aparências, como descascar uma cebola, camada por camada, me fez muitas vezes chorar. Porém, quando se está envolto pela névoa da autocomiseração solitária, é de outra natureza o teor da angústia. Talvez capaz de um grau de destruição maior, porque a saída pelo grupo, permite um compartilhar que raramente nos dá a sensação de não termos mais saída.
Entretanto, depois de passados alguns anos, comecei a notar que haviam outros personagens nesta história, além dos companheiros usuários e seus familiares. Fui conhecendo os muitos valores que estão, a cada momento, se agregando e modificando essa minha relação com a loucura. Muitos deles no patamar da complexa trama social.
Acabei descobrindo tempos depois, existe um tal de valor ideológico. Significa que, por trás da vida de cada um, existe um conjunto de idéias em comum. Elas geralmente estão num plano meio invisível para quem pensa o cotidiano. Mas através da sua percepção, conseguimos compreender melhor como está colocado o jogo de poder entre as pessoas ou entre os grupos de pessoas. E vieram as perguntas:

Será que nos foi proporcionada a capacidade de decidirmos de que forma queremos ser tratados? Ou permaneceremos massa de manobra, manipulados e disputados por:

1 psiquiatras e psicólogos,
2 capitalistas e socialistas,
3 vaidosos e poderosos,
4 políticos e governos?

Até quando conseguirão nos manter presos a nossos umbigos, cheios de: sofrimento, ódio e egoísmo?

Haverá um dia em que não mais seremos:

1 embotados e alienados, pelas drogas que tomamos,
2 adaptados a qualquer preço, nas terapias que fazemos,
3 tratados como crianças, dependentes e ingênuos, por governos assistencialistas,
4 abandonados por famílias, que nos querem longe dos olhos e do coração?

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